A verdadeira tradição musical húngara soa assim

Porventura o nome mais importante do movimento de revitalização da música de raiz húngara a partir da década de 1970, os Muzsikás continuam a dar vida aos sons das aldeias, cruzando-os, também, com a obra de Bartók.

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Os Muzsikás partiram para as aldeias em busca da tradição musical DR

Na recente apresentação do festival Terras sem Sombra em Budapeste, um dos momentos solenes, no edifício do Museu Liszt – a casa que o compositor habitou na capital húngara entre 1881 e 1886 –, os bejenses Cantadores do Desassossego juntaram, em dois momentos, as suas vozes a dois jovens músicos húngaros, estudantes de música tradicional na Academia Liszt. Ambos integrarão o espectáculo Longe, mas Perto, que a 3 de Março fará a estreia absoluta das Canções Populares Húngaras, de Fernando Lopes-Graça, no espaço Musibéria, em Serpa. Ele chama-se Áron Várai; ela, Hanga Kacsó. Antes de iniciar os seus estudos universitários, Hanga Kacsó venceu um importante e popular concurso de talentos televisivos, Fölszállot a Páva, cuja notoriedade levaria a que, em pouco tempo, se tornasse uma das habituais vozes convidadas dos Muzsikás, grupo fundamental da música de raiz tradicional da Hungria.

Esta facilidade de contacto com o cancioneiro tradicional, de que Hanga Kacsó é exemplo, está muito distante do cenário que os Muzsikás enfrentaram quando iniciaram a sua actividade em 1973. “Naquele tempo não era nada comum os jovens conhecerem música tradicional húngara dentro do seu próprio país”, conta ao PÚBLICO Péter Éri, multi-instrumentista que se juntou ao grupo como músico convidado logo nos primeiros anos e em definitivo a partir de 1978. “Aquilo que se ouvia na rádio e em todo o lado era música cigana do século XIX, mas catalogada no século XX como música tradicional húngara. Só que não era a verdadeira tradição.”

As gravações que coligiam aquela que Éri identifica como a autêntica tradição musical húngara tinham sido publicadas pela editora Patria-Record desde finais do Império Austro-Húngaro (1867-1918). Mas depois da Primeira Guerra Mundial a Patria desapareceu, assim como os meios para poder ouvir os poucos discos que sobreviveram a esse período. A sorte de Péter Éri foi ter acompanhado desde cedo o padrasto, o etnógrafo György Martin, em viagens até à Transilvânia dedicadas à recolha de canções e danças populares.

Assim, quando, no início da década de 1970, a sua geração, miúdos de 18, 19, 20 anos, começou a organizar-se e a dar corpo a um movimento de descoberta das raízes cantadas, tocadas e dançadas da tradição húngara, em rejeição da música que se popularizara nas cidades, Péter já carregava consigo a experiência das gravações de campo e o conhecimento do terreno. “A diferença entre a música cigana do século XIX e a música tradicional húngara”, concretiza, “quase se pode explicar pelo sabor, pelo tom": "As formas autênticas foram preservadas nas aldeias interiores e poucos etnógrafos tiveram a sorte de visitar esses lugares e recolher essas canções na forma original. O que é curioso é que, mesmo em 1970, as verdadeiras canções tradicionais soavam mais modernas do que aquelas que se tinham popularizado nas cidades.”

A geração que reacendeu o interesse pela música popular na década de 1970 começou então a reunir-se em torno de workshops de dança tradicional, em que os músicos participavam para alimentar e pôr em marcha as sessões. “Claro que a música e a dança na tradição húngara têm uma relação muito estreita”, frisa Péter Éri. “Consegue até sentir-se o ritmo da música pela mera observação da forma com os bailarinos se movem.” Pouco depois, Éri deixava o Sebö Group, onde acompanhara a vocalista Márta Sebestyén – cuja posterior colaboração com os Muzsikás catapultou o grupo para uma justa fama internacional, em particular com o álbum Morning Star (1997) –, para se juntar aos Muzsikás.

Sem escândalo

Claro que, antes de tudo isto, já os compositores Béla Bartók e Zoltán Kodály tinham realizado um impagável trabalho de recolhas das várias tradições musicais dos Cárpatos. Todo esse legado não seria esquecido por este movimento, mas “Bartók e Kódaly focaram-se sobretudo nas canções vocais tradicionais”, compara o músico. Por isso, também com a ajuda da tecnologia que passara a permitir muito mais tempo de gravação, Péter Éri começou a viajar com os Muzsikás para as aldeias onde acreditavam que a tradição se mantinha menos transformada, registando as suas próprias recolhas. “O objectivo, ainda assim, não eram as gravações nem propósitos académicos”, esclarece. “Queríamos era ter essa experiência do território e aprender o reportório e as técnicas daqueles músicos.”

Foi com esses ensinamentos que os Muzsikás tanto se dedicaram a recriar com a fidelidade possível os temas tradicionais que iam desencantando, quanto foram moldando uma linguagem própria sempre baseada nessa relação com a música de fundas raízes húngaras. Sem adulterações de vulto nessa matriz sonora, têm integrado nos últimos anos da sua actividade um concerto em colaboração com o quarteto de cordas Takács, apregoando a porosidade entre música clássica e música popular que Bartók e Koldály defenderam e exploraram nas suas partituras. O reportório, sem surpresas, visita a obra dos dois compositores e afirma essa definição lata do que pode ser a música húngara. Com a vantagem de, ao contrário da época de Bartók, a subida a palco de músicos populares e clássicos não rebentar em nenhuma escandaleira.

O PÚBLICO viajou a convite do Terras sem Sombra e da TAP

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