Uma vida preenchida

Um romance que pode e não pode resumir-se numa frase: “os pequenos aborrecimentos em vez das grandes tragédias”.

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Mulheres Excelentes: o título — adivinha-se — é irónico e o romance é simultaneamente alegre e triste. Mais alegre do que triste (ou alegre porque triste)

A história é conhecida, mas vale a pena voltar a contá-la. Em 1950, Barbara Pym (1913-1980) viu finalmente publicado o seu primeiro romance, que havia concluído uns anos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Até 1961, publicou mais cinco romances e, não obstante a irrupção triunfal e turbulenta dos angry young men, a escritora britânica parecia ter assegurado um lugar no mercado literário. Talvez fosse um lugar discreto, mas parecia certo (não deixando de ser revelador que, enquanto Kingsley Amis e Osborne, por exemplo, foram traduzidos e publicados em Portugal logo no início dos anos 60, Pym só começará a ser publicada por cá em 1991). No entanto, o original seguinte será rejeitado em 1963 pela sua editora de sempre, a Jonathan Cape, bem como por outras editoras, e Barbara Pym, embora tenha continuado a escrever, nada publicou nos quinze anos seguintes. Em 1977, e para comemorar o seu 75.º aniversário, o Times Literary Supplement inquiriu vários autores estabelecidos (Barthes, Nabokov, Hobsbawm, Richard Ellmann, etc.) sobre quais seriam os escritores mais sobrestimados e os mais subestimados dos últimos setenta e cinco anos. Na segunda categoria, só Barbara Pym foi citada por dois dos inquiridos, um dos quais chamado Philip Larkin. Nesse mesmo ano, Pym publicou um novo romance (que foi finalista do Booker e tudo!), Quarteto no Outono (o rejeitado em 1963 só seria publicado postumamente), e, no ano seguinte, outro, A Doce Pomba Morreu. Foram ambos publicados em Portugal pela Cotovia (em 1997 e em 1991, respectivamente).

Mulheres Excelentes é o segundo romance de Barbara Pym (sendo a edição original de 1952). O título — adivinha-se — é irónico e o romance é simultaneamente alegre e triste. Mais alegre do que triste (ou alegre porque triste). Não estivesse o adjectivo tão mal conotado neste nosso mundo ‘globalizado’ e cosmopolita, e eu diria que é um excelente romance paroquial (as subtilezas do catolicismo no Reino Unido são, aliás, insistentemente tematizadas e parodiadas — e poderiam até ter justificado uma ou outra nota de rodapé, pois quem saberá hoje, por exemplo, de que fala a autora quando fala do Movimento de Oxford ou do cardeal Newman?). A acção decorre em Londres, numa paróquia situada “do lado ‘errado’ de Victoria Station”, logo depois da guerra, cujo ascendente é legível de diversos modos e com diversos efeitos: a ala da igreja destruída por uma bomba, a partilha forçada do quarto-de-banho entre vizinhos, os militares que regressam e encontram os fatos comidos pela traça, o racionamento (que durou até 1954, recorde-se), a frugalidade das refeições (“cozi um ovo importado para o almoço”), etc.

No trilho aconchegado de um realismo social e psicológico prosaico, cómico e doméstico — com roupa interior a secar na cozinha, louça por lavar e mobília comida pelo caruncho —, a narração é feita pela protagonista, Mildred Lathbury. Linearmente, em tom menor, tecnicamente competente e, sobretudo, sem sombra de sentimentalidade ou complacência. Um alívio, num mundo soterrado por escritores incompetentes e romances grandiloquentes. Entre a observação da chegada de vizinhos novos e mais uma quermesse no vicariato, uma conferência sobre antropologia e uma disputa entre fabriqueiras sobre arranjos florais numa igreja, eis a vida muito quotidiana de uma franja da classe média remediada e instalada sem dramatismo na sua condição social. Mildred é uma solteirona, “filha de um sacerdote” (tal como a autora), cuja pretensa baixa auto-estima é declarada logo no início quando, surpreendida a observar a chegada de uma carrinha de mudanças, confessa “um sobressalto de culpa, quase como se não tivesse o direito de ser descoberta à porta de [sua] casa”. E nessa sua reconfortante e mordaz dispensa de qualquer ênfase, Mildred coloca-se do lado dos “observadores da vida”, porque “é assim que a vida é para a maioria de nós: os pequenos aborrecimentos em vez das grandes tragédias; as pequenas aspirações inúteis em vez das grandes rejeições e dos amores dramáticos da história ou da ficção.” E no entanto, talvez isto não passe de uma máscara, atrás da qual a prudentemente prosaica protagonista melhor se defende do papel social que parecia estar-lhe destinado: o casamento, a confecção do chá a tempo e a destempo, a prática das “boas acções”; enfim, “uma vida preenchida”.

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