Um desfecho “óbvio” de um processo “que nunca deveria ter existido”

Para as deputadas socialistas e os professores de Direito contactados pelo PÚBLICO, o arquivamento do processo que envolvia Mário Centeno é natural. Mas a sua abertura não é vista por todos da mesma forma.

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Miguel Manso

Num curto espaço de dias, o Ministério Público (MP) abriu uma investigação envolvendo o ministro das Finanças, Mário Centeno, realizou buscas ao seu ministério e arquivou o processo em que o pedido de dois bilhetes para o camarote presidencial do Estádio da Luz para assistir a Benfica–FC Porto de Abril do ano passado esteve sob suspeita. Tanto as deputadas do PS Isabel Moreira e Edite Estrela como os professores de Direito contactados pelo PÚBLICO consideram natural este desfecho. Já em relação ao início da história, as opiniões são diferentes.

A abertura deste inquérito, que se centrou também num alegado favorecimento a um filho do presidente do Benfica, Luis Filipe Vieira, relativamente a um processo de isenção de IMI, marcou imediatamente a agenda política. O primeiro-ministro, António Costa, garantiu que Centeno não seria afastado do Governo mesmo que fosse constituído arguido e, devido ao facto de o ministro ser agora presidente do Eurogrupo, este caso foi discutido também na União Europeia – o presidente do Partido Popular Europeu propôs um debate no Parlamento Europeu sobre as "alegações” contra Centeno. A proposta foi rejeitada.

“Podemos questionar se estão a ser bem utilizados os recursos do MP”

Foram vários os dirigentes socialistas que criticaram a abertura do processo e a actuação do MP. As críticas mantêm-se, apesar do seu encerramento. “Esperava, vivendo num Estado de Direito, que este episódio nem tivesse tido início”, afirma Isabel Moreira, considerando a investigação “absurda” e que “roça o ridículo”.

A deputada socialista defende ainda que o processo “só poderia, evidentemente, ter este desfecho”, criticando ainda o facto de “manchetes de jornais sensacionalistas ditarem a actuação do MP”. “Achar-se que o ministro das Finanças se vende por dois bilhetes é digno de um Estado persecutório”, continua, garantindo que nada neste caso beliscará Centeno: “Se beliscar alguém é o MP, por nos ter sujeitado a este triste espectáculo”.

“Absurdo” foi também o adjectivo utilizado por Edite Estrela para classificar este processo que, na opinião da deputada do PS, “nunca deveria ter existido” e que, apesar do desfecho “óbvio”, “prejudica a imagem externa de um governante que não é um governante qualquer” e a “imagem externa de Portugal”. “A imagem de Portugal está em alta actualmente, mas estas coisas deixam sequelas”, realça.

Miguel Romão, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e antigo assessor do Ministério da Justiça, num Governo do PS, nota que não conhece os factos relacionados com o processo e com o arquivamento, mas explica que o “MP está obrigado ao arquivamento” quando não se encontram motivos para dar seguimento à investigação, não estranhando o pouco tempo decorrido entre a abertura do inquérito e o seu arquivamento: “Há arquivamentos quase imediatos”.

Porém, com base nas informações que foram públicas, Romão diz que “fazer buscas ao ministério e permitir que essas buscas sejam associadas ao recebimento de dois bilhetes de futebol é uma coisa exótica”. “Podemos questionar se estão a ser bem utilizados os recursos do MP”, refere. “É de bom senso perceber se os recursos alocados seriam ajustados ao que estava em causa”.

Por seu lado, André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito Universidade do Porto, defende que, a partir do momento em que há notícias de factos que podem incorrer em crime, o “MP tem de abrir um inquérito”. “É perfeitamente normal”, diz. “Só não se abre inquérito perante notícias de crime manifestamente infundadas. Esta não era manifestamente infundada”, explica.

Notando que este tipo de crime – o recebimento indevido de vantagem – é descrito no Código Penal de “forma muito ampla”, Lamas Leite realça que “situações como esta cabem na lei como uma luva”. No entanto, o professor de Direito defende que o processo “foi bem arquivado”, porque, por um lado, “não há vantagem patrimonial” no que respeita ao recebimento de dois convites para o futebol e, por outro, é “socialmente adequado”. “É habitual”, realça.

Outra visão sobre este caso tem Bonifácio Ramos, também professor da Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, que critica a abertura da investigação com base nos factos que foram tornados públicos. “Por dois míseros bilhetes?”, questiona. “Às vezes temos uma Justiça um bocado sensacionalista”, afirma, não se mostrando surpreendido com o arquivamento.

O PÚBLICO contactou ainda António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que não quis comentar o tema.

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