Fechou a Fábrica e “a produção artística da cidade ficou mais pobre”

Projecto de criação artística criado há 12 anos ficou sem espaço. Algumas companhias vão fechar, outras procuram nova casa. “Há uma falha grave de falta de salas de ensaio” na cidade

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A Fábrica funcionava na ESMAE, que cedeu o espaço gratuitamente, mas que agora quer expandir-se Joana Gonçalves

O fim estava anunciado há muito tempo, mas apenas como uma despedida da Rua da Alegria e a adopção de uma nova morada. E, por isso, as 12 companhias de teatro e vários criadores individuais que tinham casa na Fábrica tinham os corações serenos. Até Outubro do ano passado. O anúncio veio como uma corda posta ao pescoço e precipitará mesmo o fim de algumas das estruturas que por ali ensaiavam: ao contrário do que esperavam, a antiga escola primária José Gomes Ferreira, cedida pela Câmara Municipal do Porto (CMP) ao Instituto Politécnico do Porto (IPP), não vai acolher a Fábrica — e o projecto de criação artística vai terminar.

A carrinha branca já semi-carregada anuncia mudanças na entrada do número 341 da rua. É o último dia para carregar todos os pertences acumulados pelos artistas nos últimos 12 anos nos três pisos e quatro mil metros quadrados do edifício. Há caixotes empilhados, sacos de roupa, cadeiras, um micro-ondas. Um pouco à frente, sobrevive um painel construído com papelão, espécie de cartão de visitas das “presenças operárias” do espaço: Palmilha Dentada, Erva Daninha, Teatro a Quatro, Clown Lab. E por aí fora. “Umas 35” estruturas já passaram por ali, estima Ricardo Alves, da Palmilha Dentada. E as sete salas de ensaio iam sendo usadas por muitos outros em busca de poiso temporário. “Todos recebíamos pelo menos dois ou três telefonemas por mês, a perguntar se havia salas livres”, conta a dar o mote para a análise geral do problema: “O Porto tem uma falha grave de falta de salas de ensaio. Era um problema que já existia e agora vai aumentar.”

As soluções existentes na cidade são “insuficientes” e “incompatíveis” com as lógicas de companhias como as que moravam na Fábrica. “Para nós não é viável ter uma peça durante um ou dois dias em cena. Temos de trabalhar com temporadas longas e para três a cinco mil pessoas no mínimo”, explica. Para o dramaturgo, se é verdade que “entre Rui Rio e Rui Moreira se resolveu o problema dos espaços públicos”, o mesmo não se pode dizer em relação aos desafios enfrentados por companhias como a Palmilha. “Para nós, a coisa até se agravou”, lamenta.

Foi o desejo de crescimento da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE) que precipitou o fim da Fábrica. É que a escola, “projectada para 300 alunos”, tem actualmente “mais do dobro”, explica o presidente António Augusto Aguiar. O espaço estava cedido temporariamente, enquanto não havia verbas para lhe dar outro uso. E agora que há dinheiro, ali serão criadas novas oficinas de música, espaços para ensaios, anfiteatros, gabinetes para professores.

Em resposta por e-mail, a CMP sublinha que não tem ligação ao projecto da Rua da Alegria, mas que cedeu ao IPP uma antiga escola primária, “onde aquele instituto propõe a relocalização do projecto Fábrica e das restantes companhias”.

Mas, na verdade,o IPP traçou para esse local um projecto de incubação artística e com espaço para investigação. A algumas companhias terá sido dito que poderiam integrar a nova Fábrica (o nome deverá manter-se), mas temporariamente. “Obviamente isso não serve os interesses de quem aqui estava”, comenta Ricardo Alves.

Rosário Costa vai circulando a recolher o que ainda sobra da estrutura do Teatro do Frio e explicando a lógica ali construída. “Nada disto existia”, conta ao apontar para um painel: “Cada uma das companhias foi investindo no espaço e dando forma a isto”. E agora que o fim chegou, o que se segue? “As coisas vão-se gerindo, de acordo com as possibilidades. A verdade é que isto pode tornar-se incapacitante.”

O Teatro do Frio ainda procura soluções. A Palmilha Dentada voltará aos tempos de nómada: os quatro camiões que encheram foram descarregados temporariamente num armazém em Gaia. Salas para ensaio? Será uma questão a resolver, um dia de cada vez.

Julieta Guimarães precisa recuar uns anos para pôr o peso necessário no assunto. Ela fazia parte da turma de 2005 da ESMAE que um dia foi pedir ao antigo presidente da instituição, Francisco Beja, que cedesse aos alunos um espaço para ensaiar. “Vivíamos na ditadura cultural de Rui Rio, as companhias eram mais fechadas, as perspectivas de futuro eram nulas e os teatros da cidade eram inacessíveis”, contextualiza.

Na Fábrica — assim baptizada porque ali existiu uma fábrica de meias — criou-se algo inexistente na cidade. Uma espécie de “laboratório” por onde passava muita gente, se criavam sinergias. “Uma bola de neve de criatividade”, caracteriza Julieta Guimarães, da Erva Daninha, companhia com residência no Teatro do Campo Alegre garantida até ao final de 2019. “Às vezes estávamos numa sala a ensaiar e de repente tínhamos uma dúvida e havia sempre alguém a quem recorrer”, diz, “havia dias em que passavam ali mais de cem pessoas”.

O espaço era graciosamente cedido pelo ESMAE e esse alívio nas contas era, em muitos casos, o que permitia às companhias “enfrentar a precariedade” do sector. Agora, estão como o interior do edifício do qual eram “guardiões”, de rosto desolado, “ar de fim de festa”. É, para Julieta, “um espaço que marcou toda uma geração”: “Havia quase uma linha estética da Fábrica, uma coisa nova onde a reciclagem e o reaproveitamento eram muito importantes”, diz. E agora que a Fábrica foi “desfragmentada” todo um grupo se quebra em pedaços: “É uma perda enorme. Não teremos outro espaço assim no Porto.”

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