O prazer da (re)descoberta

A interpretação de uma obra musical torna-a presença concreta e uma grande interpretação faz-nos sempre redescobrir essa obra, mesmo quando é arquiconhecida. Mas felizmente que há também casos que nos permitem novos conhecimentos ou outras possibilidades de entendimento e prazer.

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René Jacobs: uma Requiem que é um “terramoto Brill/ullstein bild via Getty Images

No Modo Crítico do 12/01, Rewind, discos, tendências, situações, escrevi que 2017 foi um ano bastante gratificantes de discos originais, sejam eles frutos de trabalhos musicológicos ou de propostas de intérpretes. No primeiro caso há a referir Metamorfosi Trecento pelos La Fonte Musica dirigidos por Michele Pasotti (Alpha), Stravaganza D’Amore! — O Nascimento da Ópera na Corte dos Medici pelo Ensemble Pygmalion e Raphaël Pichon (Harmonia Mundi) ou o Requiem de Mozart na nova edição crítica de Pierre-Henri Dutron, dirigido por René Jacobs (HM também). No segundo o regresso de Rinaldo Alessandrini e do Concerto Italiano ao seu tão bem conhecido Monteverdi com Night, Stories of Lovers and Warriors (Naïve), Bach Privat, concebido por Andreas Steier (ainda Alpha) e o Crazy Girl Crazy, primeiro disco de Barbara Hannigan na sua dupla qualidade de cantora e maestrina, com obras de Berio, Berg e Gershwin (ainda Alpha).

Por terem particular relevância e justamente por serem propostas originais tem cabimento, impõe-se mesmo explicitar as razões desse destaque.

Em Metamorfosi Trecento, os grandes mestres franceses da ars nova, Vitry e Machaut, são chamados à colação, mas são os italianos, de Landini a alguns ignotos, que dominam no trabalho dos La Fonte Musica, que no Trecento (incluindo esse derradeiro desenvolvimento da ars nova, mais eminentemente ornamental, que é designado por ars subtilior), coligem, com uma imaginação musical incessante, a temática das metamorfoses, pondo em relevo a saliência já no século XIV de fontes culturais da antiguidade clássica, quando usualmente elas se supõem sim emergentes depois, no Renascimento quatrocentista.

Stravaganza d’Amore! é um objecto maravilhoso, em 2 cds e um documentado e instrutivo livro, uma hipótese de reconstrução dos intermedii das grandes ocasiões festivas na corte dos Medici em Florença, já um teatro musical, com músicas de Caccini, Cavalieri, Marco da Gagliano, Marenzio, Peri ou Striggio, proto-história desse novo género que viria a ser a ópera, de resto concebida no cenáculo ou Camerata do conde Bardi, o qual de resto designamos por Camerata Florentina.

É tarefa de musicólogos, mas no confronto mesmo das fontes, analisar o trabalho de Pierre-Henri Dutron sobre o Requiem de Mozart concluído, a instâncias da viúva, Contanze, por Süssmayr, agora numa versão a que Dutron chama de Süssmayr Remade, e que vem na sequência de outras edições críticas recentes, remontando à de Franz Beyer. De uma coisa não há dúvida: com esses excepcionais agrupamentos que são o RIAS Kammerchor e a Freiburger Barockorchester, e pateando uma vez mais, como nas suas gravações do Così ou da Clemenza di Tito, ou das últimas sinfonias, a sua profunda afinidade com o estilo do Mozart final, Jacobs logra uma interpretação do Requiem que é um verdadeiro “terramoto”, como não ocorria desde a 1ª gravação da obra por Nikolaus Harnoncourt, em 1982, de resto, salvo erro, a primeira a usar a edição Beyer.

Em Night, Stories of Lovers and Warriors, a única coisa que não se compreende é o raio do título ser em inglês. À frente do seu bem designado Concerto Italiano Alessandrini regressa uma vez mais a Monteverdi e a obras e trechos que todos eles já os tinha gravado, para reimaginar a noite como um dos espaços privilegiados da teatralidade e do novo stile rappresentativo, do triunfo da ópera. Podemos interrogar-nos se, por exemplo, e para citar a mais conhecida obra incluída, o Combattimento di Tancredi e Clorinda, o que tem ela de “noturno”. Mas, no concreto da escuta, no encadeamento do programa, dir-se-ia estarmos a ouvir uma obra construída enquanto tal, nas matizes de luz e obscuridade que são quadro das “paixões da alma” e das maquinações, da gama de affetti. Fruto da coincidência de publicação, é fascinante ouvir Stravaganza d’Amore!, tão festivo e solar, e depois esta historicamente logo subsequente dramaturgia monteverdiana do chiaroscuro.

Como Alessandrini, Staier imaginou um programa, mas no seu caso a partir de uma interrogação: que trechos de Bach se tocariam no seu espaço doméstico? As fontes são poucas, as memórias dos filhos e alguns testemunhos de visitantes, mas ainda assim inequívocas: também havia lugar à música em tal espaço. De resto há um exemplo inequívoco, o Clavierbüchlein, o pequeno livro de teclado que Johann Sebastian escreveu para a aprendizagem da sua jovem esposa, Anna Magdalena (não confundir com a Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach, aliás apócrifa). Poderíamos ficar frustrados de, por exemplo, de uma cantata tão famosa como Ich habe genug, ouvir apenas o recitativo que lhe dá o título e uma ária, tanto mais que ela é transposta e interpretada só com soprano e cravo, mas não, a opção miniatural do programa, e só com dois cantores e três instrumentistas, revela-se coerente com o propósito. É uma proposta que, ressalvando o Clavierbüchlein, não tem fundamentos documentais para a escolha de trechos, mas é fascinante.

De Barbara Hannigan já sabemos que é um “caso”, uma notabilíssima e inteligentíssima cantora — a maior intérprete actual do papel titular da Lulu de Alban Berg —, que não contente com isso é também maestrina e que, inaudita ousadia, até pratica ambas as capacidades em simultâneo. Crazy Girl Crazy é o seu primeiro nessa dupla capacidade, e com a cumplicidade da Orquestra Ludwig. Hannigan organizou um pessoalíssimo jogo de espelhos entre três peças, entre a Sequenza III de Luciano Berio (Give a few words for a woman to sing) , a Suite que Berg extraiu da Lulu e, recordação da sua juventude, o Girl Crazy de Gershwin, num arranjo dela própria e de Bill Elliott. Mesmo com tantas credenciais fica-se atónito com a sublime interpretação da Suite Lulu ou com a contagiante euforia do arranjo de Gershwin, com toda a orquestra a cantar o celebérrimo I got rhythm! Pormenor nada despiciendo: o cd vem acompanhado de um dvd, um making of curto de duração, 15’, mas de grande inteligência, que a propósito de Barbara, a Hannigan, é uma declaração de amor à música. Realizador? Mathieu Amalric (!) cujo mais recente filme (está em exibição) é Barbara, hino à cantora francesa desse nome e dúbia história de amor — o realizador que é personagem no filme (o próprio Amalric) apaixona-se por Barbara ou pela sua intérprete no filme? Mas que jogo de espelhos mesmo!

A interpretação de uma qualquer obra musical torna-a presença concreta, e uma grande interpretação faz-nos sempre redescobrir essa obra, mesmo quando é arquiconhecida. Mas felizmente que há também casos que, saindo do quadro canónico do reportório, nos permitem novos conhecimentos ou outras possibilidades de entendimento e prazer, e esse é o caso destes discos, à escuta dos quais, por certo, uma e outra vez haveremos de voltar.

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