Uma voz crioula com ecos de sonho antigo

Mornas, coladeiras, samba e até um fado com letra de José Eduardo Agualusa. Cremilda Medina traz de Cabo Verde o seu disco de estreia, um Folclore mestiço. Já nas lojas e esta sexta-feira, 2 de Fevereiro, no B.Leza.

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Cremilda Medina NENASS ALMEIDA

Na onda de novas cantoras cabo-verdianas, porque é inevitável num país musical como Cabo Verde o surgimento quase contínuo de novas vozes, chega-nos Cremilda Medina, da mesma geração de nomes recém-lançados como Elida Almeida, Kadi ou Ceuzany.

Nascida na ilha de São Vicente, em 18 de Março de 1991, o que nos traz Cremilda? Um disco intitulado Folclore, o seu primeiro. O título pode ser enganador, porque a par da morna e da coladeira, ele abarca outros géneros. Mas a forma como Cremilda chegou à música, em grande parte pela tradição oral, justifica-o plenamente. É este Folclore que, já nas lojas desde finais de Fevereiro, é apresentado ao vivo esta sexta-feira, 2 de Fevereiro, no B.Leza, às 22h30.

“O meu relacionamento com a música veio de ouvir a minha mãe nas lides domésticas, a cantarolar músicas que ela ouviu da minha avó”, diz Cremilda ao Ípsilon.  “A maioria eram músicas populares, não se sabia o autor; e como ela nasceu na ilha de Santo Antão, na Ribeira da Torre (uma zona rural), ouviam-se de boca em boca.” Já o pai nasceu noutra ilha. “Eu sou uma mistura: o meu pai é da ilha do Fogo, a minha mãe de Santo Antão, e eu nasci em São Vicente.” Fora destas influências, já que cada ilha tem a sua personalidade cultural e musical, chegou-lhe pouca coisa. “A nossa rádio antigamente dava mais músicas tradicionais, com o passar dos anos é que vieram a introduzir outros estilos musicais. Mas eu sempre gostei do fado, ou do jazz, porque o meu pai sempre primava por ouvirmos boas músicas. Então, em casa, habituávamo-nos aos estilos.”

Ela não, mas os irmãos tiveram aulas de música; flauta, cordas, teclas. “Na passagem de ano íamos dar as Boas Festas. Arranjávamos um grupinho e íamos de casa em casa, cantando uma canção própria para arrecadar um dinheirinho.” Eram ainda miúdos. E foi um dos irmãos que ajudou Cremilda “a treinar bastante” para um concurso de canto em que ela participou aos 9 anos, a Gala de Pequenos Cantores. Não ficou nos primeiros classificados, mas foi o primeiro contacto que teve com o público e a música ao vivo.

Cremilda acha que esse começo se deveu a “um atrevimento”: “Andavam à procura de um representante da escola primária para a gala nacional. E a minha escola não podia ficar sem ir. Apesar de eu ser um bocadinho envergonhada, disse ao meu irmão: vamos lá, nem que seja para ficar no último lugar, mas temos de estar representados. Foi aí que o gosto por cantar começou a aparecer.” Com um senão, ainda: “Eu não gostava muito da morna porque a nossa morna é muito forte, tal como o fado. Algumas músicas que a minha mãe cantarolava faziam-me angústia, eu não conseguia perceber a morna. Aliás ainda não a entendo completamente, ainda estou a começar. Mas já consigo entender os sentimentos da morna. E é por aí o meu caminho, embora também cante outros estilos.”

Depois do concurso, integrou bandas musicais: o grupo Juvenil Rytmos, aos 14 anos; e aos 19 a Noites de Mindelo, que actuava na Kaza d’Ajinha às quintas e sábados. Aos 21 ficou em 3.º lugar no concurso Talentu Strela, na Praia (foi 1.ª na pontuação do júri) e em 2012 foi cabeça de cartaz da 11.ª edição do Festival de Mornas na ilha da Boavista.

Do mar, a voz das ondas

Tudo isso antes do disco, gravado em Cabo Verde, EUA e Portugal, lançado primeiro em Cabo Verde, em 2017, e em Portugal neste início de 2018. Em Folclore, ouvimos uma voz que alia juvenilidade a um grão do tempo que ainda não teve, como se nela ressoassem ecos de cantares antigos, quer na coloração quer no vibrato. Isso é bem patente na morna sensual que abre o disco, Sonho dum criola, do veterano Morgadinho, mas também na bela Doce guerra, de Antero Simas (já ouvida nas vozes de Cesária ou Desiree Fernandes) ou em Um sonho cordode, de Paulino Vieira (gravado por Bana).

Ainda no campo da morna, Raio de Sol é uma homenagem radiosa à avó de Cremilda, Bia.“Com a idade ela já não via, mas ficava a contar histórias e a cantarolar. Ela faleceu e eu não sinto que ela faleceu, por causa das boas lembranças que tenho dela.” O autor é Miguel Silva, letrista e também seu manager, que ainda assina mais dois temas: Temp antigue (coladeira de sabor tropical) Anjo di mar (uma balada em “cama” de cordas). Nos trópicos navegam também Dor d’amor, de Fany d’Anu Nobu (pontuado a metais, algures entre marcha-rancho e funk) ou Berço d’morabeza, um samba de João Carlos Silva e Anísio Rodrigues. Também com um toque algo sambista, animado a metais, percussões e acordeão, brilha ainda um tema de Jon Luz, Nha Juquina, que Cremilda defende com desenvoltura e entusiasmo.

Antes da sequência final, em animado ritmo de coladeira, com um tema de Manuel D’Novas (Divôrce um’ ca ta sená) e dois de Ti Goi (Mata morte e Falta di força), há um fado gravado em Lisboa, com Luís Guerreiro a guitarra portuguesa, Luís Pontes na viola e Ricardo Cruz (autor da música) no baixo. Chama-se Sou criola e a letra é de José Eduardo Agualusa. “Foi um desafio bastante interessante. Veio através do Miguel [Silva], eu não sabia de nada. Disse-me que em Abril íamos a Portugal gravar um fado e eu respondi que não sabia se ia conseguir. Mas quando cheguei e vi os músicos foi bastante emocionante.” E assim deixou gravado, em português de embalo crioulo: “Sou do mar, trago a voz das ondas…” Quem duvidará?

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