Os sírios curdos não acreditam que alguém os proteja das ambições de Erdogan

Aliados preferenciais dos Estados Unidos no combate ao Daesh, as forças curdas enfrentam agora todo o poderio turco. Em breve, a operação pode colocar soldados de Ancara diante de americanos.

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Combatentes sírios aliados dos Turcos no monte de Barsaya, conquistado este domingo Khalil Ashawi/Reuters

Domingo acordou ensolarado e a aviação e artilharia turcas aproveitaram: depois de dias de chuva e neblina, as bombas caíram durante muito tempo no monte Barsaya, na região de Afrin, Noroeste da Síria. “Passo a passo, vamos limpar toda a nossa fronteira”, afirmou Recep Tayyip Erdogan num discurso na cidade de Corum. Antes, o Exército turco anunciara ter capturado Barsaya, um alvo “crítico” na operação Ramo de Oliveira, lançada a 20 de Janeiro.

É mais uma guerra dentro do conflito sírio, uma crise onde participam todas as potências da região, para além de países europeus, da Rússia e dos Estados Unidos. Não é a primeira vez que forças turcas atacam os curdos sírios a pretexto de combater o terrorismo – das vezes anteriores, o alvo oficial era o Daesh (hoje quase derrotado); agora é o “terrorismo curdo”. E agora, o Presidente turco promete que não pára até “varrer” os curdos da sua fronteira, querendo empurrá-los na direcção do Iraque.

O monte Barsaya domina Azaz, primeira vila síria num dos pontos da fronteira, e Kilis, do lado turco. Não é certo que esteja tomado: há uma semana, os turcos e os seus aliados árabes sírios reclamaram este alvo, pouco antes de o perderem para as YPG (Unidades de Defesa do Povo), o braço armado do PYG (Partido da União Democrática) que controla Afrin e o chamado Rojava, o conjunto das três regiões que formam o Curdistão Ocidental ou Sírio.

As YPG são há anos o principal aliado dos EUA e dos países europeus no combate aos jihadistas – Washington armou-as, treinou-as e tem pelo menos 2000 militares estacionados com estas forças, a maioria actualmente em Manjib, onde Erdogan ameaça atacar depois de derrotar Afrin.

Foram os combatentes das YPG que libertaram Kobani, por exemplo, a cidade curda síria junto à fronteira com a Turquia que o Daesh quase tomou em Janeiro de 2015. Quatro meses de intensos combates em Kobani fizeram pelo menos 1600 mortos e deixaram a cidade em ruínas. Mas Kobani tornou-se num símbolo, de resistência, por parte dos curdos (Erdogan recusou deixar passar turcos curdos para ajudarem os sírios, mas houve iraquianos a combater a seu lado), e de fragilidade para o Daesh, que assim perdia a aura de invencibilidade.

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Mais recentemente, foram as Forças Democráticas Sírias (coligação formada pelos EUA com tropas curdas na sua maioria) a expulsar em poucas semanas o Daesh da sua capital simbólica, Raqqa.

“Temos o mesmo sentimento que durante o cerco de Kobani por parte do Daesh. A comunidade internacional não fez nada durante 40 dias. Nós lutamos sempre sozinhos”, diz à RT francesa (com sede em Paris mas financiada pelo Governo russo) Agit Polat, responsável de assuntos externos no Conselho Democrático Curdo em França.

É verdade – até os russos, que tinham 300 homens nas imediações de Afrin, se retiraram para abrir caminho aos turcos e aos seus aliados (rebeldes anti-Bashar al-Assad aos quais Ancara paga para combater), ao mesmo tempo que Damasco e Moscovo abriram o espaço aéreo para Ancara bombardear à vontade a região curda da Síria. A Turquia já usou esta estratégia para derrotar bolsas do Daesh. Agora, vai contar com mais resistência – por algum motivo, os curdos foram a escolha dos EUA.

Quem avisa quem

Nos primeiros dias da Ramo de Oliveira, poucas críticas se ouviram a Erdogan. Na quinta-feira, a Alemanha anunciou que vai travar uma entrega de armas à Turquia e suspender um acordo para renovar tanques de fabrico alemão do Exército turco, França pediu uma reunião especial do Conselho de Segurança da ONU e o Presidente Donald Trump avisou o homólogo turco contra “acções que possam provocar um conflito entre forças turcas e americanas”.

Muito pouco, principalmente se juntarmos a isto a garantia que Washington terá dado a Ancara de parar de armar os curdos. Depois de Afrin, “vamos limpar Manbij”, repetiu este domingo o porta-voz do Governo turco, Bekir Bozdag, um dia depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mevlüt Cavusoglu, ter avisado Washington para retirar as tropas que tem em Manbij, 100 km a Leste de Afrin.

Os EUA e a Turquia discordarem é algo que tem acontecido com cada vez mais frequência (tanto que Erdogan participa desde o ano passado nas conversações de paz sírias organizadas por Moscovo), mas outro cenário, bem diferente, seria militares americanos verem-se obrigados a defenderem-se de soldados turcos, com quem se habituaram a estar lado a lado na NATO.

Direito à defesa

“Estamos completamente alerta para responder a qualquer ataque. Claro que continuamos a coordenar-nos com a coligação internacional em relação à protecção de Manbij”, disse à Al-Jazira Sharfan Darwish, do Conselho Militar de Manbij, uma unidade das YPG. “As forças da coligação que estão na zona têm um direito inerente a defenderem-se e vão fazê-lo, se necessário”, afirma, por seu turno, o coronel Ryan Dillon, americano que é porta-voz da coligação internacional que combate o jihadismo no país.

De tão perigoso parece pouco provável que americanos e turcos se enfrentem. O que isso significa para os curdos é que provavelmente ninguém se vai realmente mexer para obrigar a Turquia a parar de os bombardear. “Para nós, os EUA têm a obrigação moral de proteger a democracia e o sistema democrático nesta região”, disse em Washington Sinan Mohamed, representante de Rojava, garantindo que o PKK, ou o “terrorismo curdo” de que fala Erdogan, é um problema interno turco.

A verdade é que os curdos da Síria sempre quiserem ser isso mesmo – sírios – mesmo quando os Assad (antes de Bashar, Hafez) insistiam em retirar-lhes a cidadania. E Afrin, símbolo da governação de Rojava, com todos os seus defeitos, é uma cidade funcional que abrigou centenas de milhares de sírios em fuga de Assad e dos jihadistas.

Agora, voltou a morrer-se na zona e voltaram a chegar pessoas. “Alguns dos que encontrei já são refugiados de vilas árabes controladas por grupos apoiados pelos turcos ou pelo Daesh”, disse à BBC. Hamrin Habash, licenciada em Literatura Inglesa de Afrin. “Vieram porque Afrin era seguro. Mas vão ter de fugir outra vez”.

Segundo as autoridades curdas, dezenas de civis foram mortos nos bombardeamentos turcos. Domingo, os ataques aéreos mataram pelo menos três pessoas da mesma família em Afrin, diz o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (ONG ligada à oposição com sede em Londres e uma rede de médicos e activistas na Síria).

Habash diz que enquanto as YPG estiverem por perto não tem medo, mas está zangada. “Culpo toda a gente. A NATO, a Rússia e os EUA”, afirma. “Combatemos os extremistas para defender o mundo inteiro. E agora? Eles deixam a Turquia atacar-nos nos seus sonhos expansionistas e delirantes”, acusa. O que Habash garante é que ela e a sua família não vão arredar pé: “Nunca abandonaremos as nossas casas. Os turcos querem fazer uma limpeza étnica dos curdos, não o vamos permitir”. 

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