Olhò cartão do cidadão fresquinho!

É para todos evidente que reunir o maior número de serviços públicos permite rentabilizar os recursos, gastar menos. Uma nova geração de serviços está a avançar, sobre rodas.

O meu favorito era o carro de caixa aberta com um altifalante no capot e um homem a dizer sempre a mesma frase: “É banana madura para vender barato, barato!” Mas também achava graça a outros pregões. “Galinhas amarelas! E são galinhas amarelas!”, anunciava outro vendedor que por ali passava amiúde.

No mundo rural da década de 1980, muito faltavam serviços públicos e privados. E quem mais se afligia com isso eram as pessoas desprovidas de carro ou mota — demasiado jovens, demasiado idosas, demasiado pobres ou demasiado doentes para conduzir.

Conheci bem essa realidade. Cresci na Madeira rural. Nem havia autocarro do meu sítio para a vila, situada a cinco quilómetros. E só iam duas camionetas para a cidade, uma às 6h45 e outra às 15h. Para regressar, havia três hipóteses: às 9h, às 13h e às 17h45. Demoravam mais de duas horas a fazer 57 quilómetros.

As vias rápidas e as auto-estradas encurtaram distâncias em grande parte do país. A rede viária nacional é considerada uma das melhores de toda a União Europeia. Só que a rede de transportes públicos continua muito deficiente. E, depois de um forte avanço, o Estado fez um “recuo estratégico”.

A população continuou a sair das aldeias para as vilas ou para as cidades, do interior para o litoral, de Portugal para o estrangeiro. E foram fechando escolas, tribunais, repartições de finanças, extensões de saúde, postos de correios... Atrás disso, bancos, jardins-de-infância, mercearias, pequenas lojas, cafés...

Nada, já se sabe, pesa mais do que a falta de emprego. O domínio da cultura urbana dá um contributo. E o défice de serviços também desempenha o seu papel na hora de trocar a aldeia pela vila ou cidade, o litoral pelo interior ou mesmo Portugal pelo estrangeiro. Muitas vezes, vale a quem fica “o carro do pão”, o “carro do peixe”, “o carro da fruta”. Pelo sítio dos meus pais, continuam a passar esses e outros. “Porcos e porcas!”, apregoa um. “Atum fresco e peixe fino!”, apregoa outro.

Nalgumas partes, o esvaziamento é tal que já ninguém se atreve a pensar em estratégias destinadas a inverter a situação — são sítios condenados à morte. Noutras partes, as vontades resistem, contra as famosas lógicas da “racionalidade” e da “rentabilidade” — ou apesar delas, com recurso à inovação.  

Pela Europa fora, banalizou-se o “princípio do agrupamento funcional”. É para todos evidente que reunir o maior número de serviços públicos num edifício permite rentabilizar os recursos, gastar menos. Aqui e ali, desenvolvem-se serviços à distância, através do telefone ou da Internet. Em Portugal já é possível, por exemplo, solicitar o registo criminal, alterar a morada do cartão do cidadão ou marcar consultas médicas em centros de saúde pela Net. Mas quantos idosos isolados nas suas aldeias conseguirão fazê-lo? Uma terceira via avança, por vezes combinando as duas primeiras: a dos serviços móveis.

Há pouco mais de dois anos, tive ocasião de ver exemplos de boas práticas em várias zonas do país. Em Odemira, o mais extenso (1720 quilómetros quadrados) e menos povoado município (22 mil), andámos a acompanhar um psicólogo que se dedicava a combater a solidão e o isolamento. Na Guarda, seguimos um “habilidoso” que fazia pequenos arranjos nas casas de pessoas idosas, dependentes, carenciadas. Em Vinhais, acompanhámos uma equipa que levava serviços de enfermagem e fisioterapia a pessoas que viviam mais afastadas da vila. Em Palmela, observámos a Loja Cidadão Móvel.

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Adriano Miranda

Palmela criou em 2010 um serviço municipal móvel. Volvido um ano, abriu a primeira Loja Móvel do Cidadão. A equipa segue uma rota pré-definida. No dia e na hora marcada, passa pelos 25 lugares de cinco freguesias e pára uns minutos. Tanto trata de assuntos da competência do município (comprar passe escolar, pagar a água, etc.) como da administração central (pedir um registo criminal, uma certidão de nascimento, um subsídio de assistência de terceira pessoa, alterar a morada, revalidar a carta de condução etc.). E isso facilita a vida a quem vive mais longe do centro.

Há pouco mais de um ano, o Governo aprovou o Programa Nacional para a Coesão Territorial e no extenso rol de medidas podia ler-se: “Expandir a rede ‘Balcão Cidadão Móvel’ a partir da experiência-piloto que será realizada na Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela — 15 unidades móveis de serviços públicos da Administração Local e Central com as características de Balcão do Cidadão.” Esta é, de resto, a 17.ª medida Simplex, com um custo previsto de 670 mil euros.

A Comunidade Intermunicipal tinha pensado numa rede composta por 15 unidades móveis sagrada para levar serviços de saúde às populações mais isoladas. A administração central decidiu acrescentar-lhe todo um conjunto de serviços públicos e de proximidade, replicando o modelo de Palmela.

Esta ideia de ir de terra em terra a responder às necessidades de cidadãos com menos acesso aos serviços do Estado tem vindo a ser posta em prática em situações de emergência. No Verão, equipas de profissionais do Instituto de Segurança Social, do Instituto dos Registos e Notariado e da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro andaram em três carrinhas por 252 sítios dos três concelhos mais afectados pelos incêndios de Junho. Fizeram 1345 atendimentos. No Outono, nove percorreram os 18 concelhos mais devastados pelas chamas de Outubro. Em 604 sítios, fizeram 2113 atendimentos.

Já este mês, o Governo anunciou que cinco carrinhas Espaço Cidadão Móvel circulariam por 13 concelhos atingidos pelos incêndios com a missão de reforçar o trabalho que tem estado a ser coordenado pela Segurança Social.

Posto isso, irão movimentar-se pelo país a oferecer os seus préstimos. Não precisarão de ter um altifalante no capot, nem de apregoar: “Olha a revalidação da carta de condução, olha a marcação de consultas, olha o apoio na verificação das facturas...” Serão estabelecidas rotas de circulação em várias zonas. Haverá um calendário com datas para cada sítio. Para muitos, será um alívio.

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