Na noite francesa da Gulbenkian Ricardo Araújo Pereira fala de Shakespeare (não é uma piada)

Porque é que também devemos pensar em francês? 50 anos depois do Maio de 68, o festival La Nuit des Idées na Gulbenkian pediu a 30 conferencistas, franceses e portugueses, para discutir como se pensa hoje o inimaginável.

Fotogaleria
As filas que se fizeram à porta dos auditórios na Nuit des Idées Miguel Manso
Fotogaleria
O espectáculo de dança Miragens, interpretado por Magalie Lanriot e Mathilde Gilhet Miguel Manso
Fotogaleria
Miguel Manso
Fotogaleria
Miguel Manso
Fotogaleria
Miguel Manso
Fotogaleria
Ricardo Araújo Pereira ENRIC VIVES-RUBIO

O humorista Ricardo Araújo Pereira parece uma vítima da síndrome de Stendhal, que aqui tomamos a liberdade de traduzir como um excesso de exposição ao mundo intelectual e artístico francófono. O sintoma mais óbvio deste inebriamento é que chega ao púlpito da conferência proferida na sexta-feira à noite na Fundação Gulbenkian com várias folhas na mão e lê a sua intervenção sem abandonar os papéis até ao fim.

Mas pode ser mais rigoroso descrevê-lo como uma vítima de uma síndrome Gulbenkian. Talvez o humorista tenha mesmo escolhido encarnar o alter-ego do nosso filósofo mais francês, Eduardo Lourenço, que poucas horas antes, ao início da noite, com as suas míticas folhas escritas à mão, proferiu um discurso impressionante de erudição sobre a sensibilidade “fin de siècle”, inventada há cem anos, que hoje nos continua a dar pistas eficazes para perceber as distopias da actualidade.  

Ricardo Araújo Pereira e Eduardo Lourenço estão entre os 30 participantes de La Nuit des Idées, organizada pela Embaixada de França, pelo Instituto Francês de Portugal e pela própria Gulbenkian, que junta Lisboa pela primeira vez a esta festa do pensamento global. O festival mistura intelectuais, artistas e investigadores, portugueses e franceses, para discutir como se pensa hoje a utopia, como se acede ao inimaginável ou de onde vem simplesmente o impulso da criatividade.

Avancemos, então, até ao fim da noite, quando Ricardo Araújo Pereira sobe ao púlpito com as suas folhas pronto a discursar. O Auditório 2 está a abarrotar, como em todas as outras sessões, e o humorista faz a rábula de que não estava à espera de uma audiência tão grande. Impecável, no seu habitual fato cinzento-escuro e camisa branca sem gravata, começa por dizer que vem apenas defender duas ou três ideias. Mas, logo depois, avança, sem contemplações: “Por exemplo, que no drama histórico Henrique IV o príncipe Hal corporiza, de algum modo, a ideia de política, e o Falstaff encarna a ideia de humor. Que esses conceitos são geralmente incompatíveis e que a rejeição de Falstaff pelo príncipe no final da peça significa também a rejeição da imaginação, ou de um certo tipo de imaginação, pelo poder. Quem quiser está ainda a tempo de se retirar...”

A imaginação ao poder

Era Shakespeare por Ricardo Araújo Pereira, para falar de Falstaff, “talvez a personagem mais famosa da história da comédia”. Um gordo, gatuno, burlão, glutão, devasso, “que transforma defeitos em virtudes, derrotas em vitórias” e consegue “mudar as coisas sem lhes tocar, alterando apenas a maneira de olhar para elas”. Se Falstaff tem uma estratégia humorística, já Hal tem uma estratégia política: a primeira “visa obter e reforçar o poder”, a segunda “é ela própria o poder”.

O humorista profere duas ou três frases em inglês, citando Shakespeare, claro, e não se deixando influenciar pela política linguística da noite — tradução simultânea português/francês/português.

O que faz Shakespeare na Nuit des Idées? — perguntamos-lhe depois. “Sim, de facto a noite era francesa, mas o mote era ‘A imaginação ao poder’, a propósito do aniversário do Maio de 68”, responde Araújo Pereira. “Foi por causa disso, da relação da imaginação com o poder, que falei de Henrique IV e de Shakespeare. Acha que posso ter estado na origem de um incidente diplomático?”

Mas voltamos a Eduardo Lourenço, que começa por citar Flaubert na língua original, para dizer que o francês já “foi a língua daquilo a que se chamava mais civilização do que cultura”. Depois, passa por vários nomes franceses, como o próprio sublinha, para desembocar em Proust, não deixando de fora Pessoa ou Nietzsche, para analisar “a estranha expressão fin de siècle”, que há cem anos não era uma simples constatação cronológica: “Se não significava fim do mundo, exprimia para uma parte significativa da intelligentsia europeia um sentido de cansaço, de frustração, de decadência, sobretudo de desilusão.” Não é por acaso, acrescenta, que a expressão “nasceu numa cultura que era considerada exemplar”, como um pressentimento de que a civilização da luz e do progresso, prometida pelos séculos XVIII e XIX, já não se podia considerar o centro do universo e vivia efectivamente o seu fim. Lourenço pede ajuda a um alemão, Nietzsche, para dizer que talvez a palavra “ressentimento” explique igualmente essa “intensa melancolia”, ou “depressão espiritual”, que mostra “uma metamorfose profunda das relações do homem ocidental com o tempo”.   

Não vai ser possível ouvir a investigadora Maria de Jesus Cabral, porque a sua conferência coincide com a de Eduardo Lourenço, ela que há-de explicar, promete o título da sua comunicação, porque é importante pensar a imaginação em francês. Como em quase todas as sessões e espectáculos se juntam pequenas multidões, com muitos jovens à mistura, não é fácil saltar rapidamente de auditório em auditório. Conseguir entrar significa quase sempre passar por uma fila, de que às vezes não se consegue ver o fim.

Foto
O espectáculo de dança Miragens, interpretado por Magalie Lanriot e Mathilde Gilhet Miguel Manso

Por que razão é então importante pensar em francês? — perguntamos à professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, à margem da conferência. “A cultura molda o pensamento, e pensar com o suporte lógico francês, mais cartesiano, que arruma as coisas por categorias, como nas enciclopédias, não é a mesma coisa que pensar com a lógica portuguesa, por natureza dialéctica, que se faz em diálogo de prós e contras, ou mesmo a  inglesa, mais empírica.”

Nenhuma língua é melhor do que a outra, sublinha, mas no mundo actual precisamos da imaginação trazida pela diversidade para termos um novo ângulo de abordagem aos problemas: “Vivemos num mundo um bocadinho paradoxal. Apela a que tenhamos sensibilidade à diversidade, mas que ao mesmo tempo que esse mundo seja pensado com uma língua única, o inglês. Falar uma língua única também equivale a pensar com modelos pré-formatados.”

A investigadora, que preside à Associação Portuguesa de Estudos Franceses, reconhece que é difícil o francês poder funcionar como uma língua franca, como o inglês, porque recusa uma certa simplicidade: “É uma língua com um substrato cultural demasiado enraizado e forte. Está imbuída de uma tradição filosófica, de uma tradição literária extremamente diversificada e de uma história política complexa, controversa e por natureza reivindicativa, com os exemplos da Revolução Francesa ou do próprio Maio de 68.”

Para a investigadora, imaginação ou francês são ambos analogias para mostrar como hoje precisamos de ferramentas de pensamento diversas, lembrando a obra Contre la pensée unique, de Claude Hagège.

Voltamos ao Auditório 2 para ouvir o filósofo José Gil fazer a sua tradução da palavra de ordem do Maio de 68, “A imaginação no poder!”: “Queria dizer que gosto de traduzir este slogan por ‘A realidade no poder!’, mais exactamente o ‘real no poder’.” Porque “a imaginação, enquanto poder de criação, tem a vocação de fabricar o real”.

Gil usou uma escultura, de Giacometti, e um poema, de Fernando Pessoa, para mostrar esta vocação criadora da imaginação. Depois de descrever em detalhe o Gato (1951), com o seu traçado imprevisível — que não é uma linha, recta ou curva, mas “infinita e microscopicamente abrupta e acidentada” —, o filósofo afirma que o gato encarna uma singularidade universal e não uma universalidade singular: “É porque aquele gato esculpido é absolutamente singular, que todos os gatos reais são o gato de Giacometti.” Isso, acrescenta, é próprio de todo o objecto de arte. O todo depende de cada elemento mínimo, microscópico, concluindo Gil que há uma imaginação da própria coisa a que o artista se deve submeter. A “imaginação corpórea”, de que falava Fernando Pessoa/Álvaro de Campos na Ode Marítima (1915), que transforma as imagens em coisas.

A invenção do novo, diz José Gil, na arte, no pensamento filosófico ou na ciência, “depende da possibilidade de associar elementos, estabelecer ligações entre pensamentos e imagens, e entre imagens e ideias que, anteriormente, pareciam estrangeiras umas às outras”. Na invenção, “a imaginação dá um salto, conecta dois elementos afastados um do outro, e, bruscamente, a novidade acontece”.

Coube a Paulo Pires do Vale, que recentemente comissariou uma exposição sobre Ana Hatherly na Gulbenkian, falar sobre o papel da falta, da falha, do vazio. O curador trouxe outras palavras de ordem do Maio de 68 — “Ter falta de imaginação é não imaginar a falta” — para defender que a imaginação deve “enfrentar a falta, ser capaz de imaginar a falha, antes de propor o que falta, em vez de o tapar com as respostas já seguras, gastas e retardadas”. Regressamos a Pessoa, desta vez ao Bernardo Soares do Livro do Desassossego, para encontrar a palavra “outridade” ligada à imaginação. Depois de explicar que a utopia não é uma questão de espaço nem mesmo de tempo, mas de ponto de vista, de instrumentos de análise, Paulo Pires do Vale propõe que olhemos a arte como detentora desse poder de subversão: “Pode ser bolsa de resistência, capaz não só de pensar a falta mas de a fazer sentir, já aqui e agora.”

“A nossa Manhã das Ideias”

O arquitecto Manuel Aires Mateus, o último Prémio Pessoa, apresenta a Casa do Alqueva (2007-2018), para explicar de onde vêm as ideias em arquitectura, numa obra que deve estar terminada em Março.

Na paisagem do Alentejo, onde o atelier Aires Mateus tem trabalhado desde o princípio da carreira arquétipos próximos da arquitectura popular, surge agora uma arquitectura bunker, que também quer evocar as ruínas da Antiguidade Clássica, nomeadamente Petra, na Jordânia.

Curioso é que a construção da casa, atingida pela crise, esteve parada cinco anos, tendo o atelier Aires Mateus sido obrigado a fazer uma nova pergunta quando voltou ao projecto em 2012: como retomar uma casa que é ela própria já uma ruína?

Mas, de certa maneira, a Casa do Alqueva já encerrava uma incerteza distópica, que a nova natureza de ruína só veio sublinhar: propõe-se como um bunker e como uma memória de Petra; quer deixar a paisagem inalterada e enterra-se profundamente no terreno; afirma a arquitectura como escultura, ao jogar com a sensação de que os espaços interiores se constroem por subtracção e não por adição.

Lembramo-nos, então, do filósofo francês Thierry Hoquet, autor do livro Cyborg philosophie: penser contre les dualismes, cuja conferência saltámos para ir espreitar o espectáculo de dança de Magalie Lanriot e Mathilde Gilhet, que entretanto começava no átrio do museu, na outra ponta da Fundação Gulbenkian. De regresso, ainda conseguimos chegar a tempo de ouvir as suas palavras de Thierry Hoquet, um pouco inquietantes, sobre a vida das personagens que saem da ficção científica. “Vagabundos, mutantes, híbridos, estas criaturas que escapam do laboratório mostram que aquilo a que chamamos humanos é transitório.”

Num balanço desta Nuit des Idées e o que significa pensar em francês, José Gil devolveu-nos a pergunta com uma analogia com o português: “Hoje, é importante para um português falar e pensar em português para poder traduzir o seu pensamento em francês e noutras línguas — e, eventualmente, para entender melhor a poesia de Mallarmé e captar melhor Shakespeare, o que é diferente de os traduzir. É certamente importante falar em francês para pensar em francês, se isso nos permite devir-outro sem nos perdermos, nós, portugueses. Porque é preciso também que tenhamos a nossa Noite (ou Manhã) das Ideias.”   

Sugerir correcção
Ler 1 comentários