A América é a América, é a América

Escreveu Richard Haass, do Council on Foreign Relations, sobre Trump: “O mundo tem de aprender a viver com ele".

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1. A expectativa inicial era a de um choque de titãs. Talvez fosse exagerada, porque a economia já não é dominada pelas duas metades do Ocidente: os EUA e a Europa. Entraram novos actores que souberam tirar partido da globalização e que estão hoje em melhores condições para desafiar o domínio ocidental. A China é o primeiro nome que vem à memória (em 2017, Xi Jinping foi a Davos apresentar-se como o líder da globalização), mas não é conveniente esquecer a Índia, que regista hoje um crescimento económico maior do que o do seu grande vizinho de Leste. O que se esperava era o confronto entre duas visões do mundo, a de Donald Trump e a dos líderes europeus, que resolveram marcar uma forte presença em Davos, para anunciarem que a Europa está de regresso.

Angela Merkel e de Emmanuel Macron, secundados por outros líderes europeus, da Itália à Espanha, passando por Portugal, pela Irlanda, ou pela Holanda, falaram na quarta-feira para dizer que a Europa defende uma ordem internacional que deve continuar a assentar em instituições multilaterais e que é preciso prevenir os excessos da globalização, sob pena de ela se destruir a si própria. Foram dois discursos políticos, contra o populismo, o proteccionismo e o nacionalismo, rebatendo ponto por ponto as ideias do Presidente americano sobre o papel dos EUA no mundo e sobre a melhor forma de o organizar. As palavras-chave foram : “inclusão”, “cooperação” e “abertura”. Quando Trump chegou a Davos, na quinta-feira, já não estavam presentes. Aliás, os seus encontros limitarem-se ao Presidente do Ruanda, ao seu grande amigo Benjamin Netanyahu, e a Theresa May, desesperada por um acordo de comércio que possa contrabalançar a saída da União Europeia.

2. A sua intervenção era esperada com alguma ansiedade. Nunca se sabe o que vai dizer exactamente, mas continua a ser o Presidente da nação mais poderosa do mundo. Ignorá-lo não é uma opção. Trump usou um tom mais soft do que lhe é habitual e conseguiu ler o seu discurso sem qualquer aparte. Tinha uma missão: convidar as grandes empresas a investir nos EUA, oferecendo-lhes a “economia mais competitiva do mundo”. O que, por sinal, nem é mentira. Tinha boas notícias. A economia vai continuar a crescer a bom ritmo (mesmo que tenha ficado atrás das previsões mais optimistas para 2017, em apenas 2,6%). E, sobretudo, oferecia-lhes as duas palavras que mais gostam de ouvir: “desregulação” e “impostos baixos”. Já desfez, quase sem se dar por isso, a regulação dos mercados financeiros que Obama pôs em prática na sequência da crise de Wall Street (o seu secretário do Tesouro veio directamente de lá). Os cortes nos impostos das empresas (e também nos rendimentos da classe média) foram os maiores de que há memória, mesmo tendo como referência Ronald Reagan. “A América está aberta aos negócios”, o que é bom para o mundo inteiro. “Quando os EUA crescem, o mundo também cresce.” De resto, foi igual a si próprio e às suas ideias. Apenas tentou explicar melhor o que quer dizer America First, que não é nada mais do que aquilo cada um devia fazer pelo seu país. Ainda não lhe ocorreu que, se todos fizessem como ele, o mundo cairia rapidamente numa desordem hobbesiana. Foi o “homem anti-Davos”, como os analistas previam. Mas também o Presidente de uma economia que ninguém presente na sala pode ignorar. De resto, não desmereceu do seu estilo inimitável: “Tivemos uma multidão tremenda, como eles nunca tiveram antes.”

O mundo dos negócios não gosta dele. Mas ainda não tem a certeza de que a Europa consiga vencer a crise, melhorar a competitividade e voltar a unir-se em torno de um projecto comum. O Financial Times classificava o ambiente de Davos como de um “optimismo congelado”. São boas as perspectivas da economia mundial. Mas o perigo de uma “guerra comercial” provocada pelos EUA ainda não está afastado. A crescente desordem mundial, com o aumento da conflitualidade, também não lhes convém, agravada pela ausência da liderança americana, pela crescente ambição chinesa e pelas dificuldades europeias. Ou seja, ainda está tudo em aberto sobre o mundo que vai emergir desta transição turbulenta que estamos a viver.

3. Do lado de cá do Atlântico, ninguém quer hostilizá-lo abertamente. Trump convidou o seu homólogo francês para uma visita oficial à Casa Branca em Abril, fazendo dele o primeiro chefe-de-Estado que vai receber. Macron tem a virtude de falar claro, mas também sabe compreender o que é uma conversa entre potências. Tal como Merkel, tem a plena consciência de que a Europa não pode dispensar os EUA. Não é só a economia. Trump ainda não desistiu de “rasgar” o acordo nuclear com o Irão. O Médio Oriente mergulhou no caos, e uma paz israelo-palestiniana nunca esteve mais longe, também graças ao Presidente americano. Precisam dos Estados Unidos para manter uma frente unida contra as ambições de Moscovo.

Em Davos, Trump, seguindo a nova doutrina do Pentágono, lembrou que, ainda mais do que o combate ao terrorismo, os EUA têm de estar preparados para enfrentar as duas grandes potências “revisionistas”, a Rússia e a China. E a verdade é que os europeus também têm problemas com a China, quer em matéria de “propriedade intelectual”, quer em matéria de investimento chinês sem as devidas contrapartidas. A chanceler “desaprova muitos aspectos de Trump, no estilo e na substância”, escreve o Politico. Mas, ao mesmo tempo, acredita que os problemas mundiais mais urgentes exigem a liderança americana. Escreveu Richard Haass do Council on Foreign Relations: “O mundo tem de aprender a viver com ele”. 

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