Farewell, RMS St Helena

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estiveram a bordo do Royal Mail Ship. Crónica final da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

Fotogaleria
José Filipe de la Fuente
Fotogaleria
José Filipe de la Fuente
Fotogaleria
José Filipe de la Fuente
Fotogaleria
José Filipe de la Fuente

9 de Fevereiro de 2018 será feriado em Santa Helena. Nesse dia, o RMS partirá pela última vez de Jamestown. Com ou sem feriado oficial, suspeitamos que serão poucos os saints que não estarão no porto para se despedir do navio cuja história se confunde com a da ilha. No final do século XX, Santa Helena estava radicalmente mais afastada do mundo do que 100 anos antes; no porto de Jamestown pararam, em 1860, mais de 1000 navios. Em 1970, esse número estava reduzido praticamente a zero, condenando a ilha a um isolamento quase total, do qual o RMS a veio resgatar.

Nas últimas décadas, o RMS St Helena – o actual, construído em 1989, e o seu antecessor, que chegou a ser utilizado na guerra das Falkland, com parte da tripulação alistada voluntariamente - trouxe alimentos e equipamentos indispensáveis; levou os muitos que emigraram; trouxe de volta familiares e amigos; empregou e formou jovens e menos jovens; transportou os que precisavam de tratamento urgente ou especializado; e, claro, assegurou o correio.

Foto
José Filipe de la Fuente

Será o fim de uma era, não apenas para a ilha, mas também para um certo tipo de navegação que tem neste serviço o seu último representante.  Ao longo de toda a viagem, a consciência desse fim iminente tornou ainda mais evidente a nostalgia que o delicioso anacronismo da vida a bordo do RMS inevitavelmente suscita.

O dia começa com a leitura do Ocean Mail, o jornal de bordo, que mãos misteriosas fazem deslizar muito cedo por baixo da porta da nossa cabine. É assim que somos informados da indumentária recomendada para o jantar ou das actividades do dia, que podem incluir o muito disputado desafio de críquete jogado no deck – com pesada penalização para a equipa que atirar a bola pela borda fora – ou o igualmente renhido RMS Team Quiz. Outro momento alto é o cocktail oferecido pelo comandante, em que os passageiros têm oportunidade de se vestir a rigor – com resultados de elegância, digamos, variáveis – e tomar umas bebidas por conta da casa.

A comida é, obviamente, uma parte importante do ritual diário. O almoço e o jantar são anunciados por uma espécie de jingle que parece adaptado de uma canção infantil e que, rapidamente, passa a produzir efeitos pavlovianos nos passageiros. Entre as refeições principais, dois momentos tipicamente ingleses: às dez da manhã, beefed tea (um caldo de carne servido como se fosse chá); e, às quatro da tarde, afternoon tea (acompanhado de pequenas sanduíches de pepino). Primeiro estranha-se, depois entranha-se, garantimos.

Foto
José Filipe de la Fuente

Seja porque há poucas pessoas interessadas em conhecer estas paragens, seja porque isso implica passar 18 dias a bordo de um barco, a verdade é que o RMS atrai uma quantidade invulgar de pessoas com vidas diferentes. Como Gunther, que falsificou passaportes para fazer sair dissidentes da Alemanha Oriental, foi preso na sua própria tentativa de fuga e se tornou um médico especializado em exercer em locais remotos e situações extremas. Quando o conhecemos, na nossa anterior viagem, regressava a Santa Helena para mais uma temporada. Agora parece decidido a acrescentar Tristão da Cunha a um percurso que inclui Timor Leste, as Ilhas Salomão, o Afeganistão ou o Iraque. E onde mais seria possível encontrar um personagem como Basil, que detém a honra de, enquanto membro do júri britânico do Festival da Eurovisão de 1974, ter atribuído zero pontos aos ABBA e ao seu Waterloo e para quem a honra maior do certame foi E Depois do Adeus ter servido de senha para o início de uma revolução?

Este perfil muito particular de passageiro fornece a matéria-prima para a imperdível palestra da tarde. O alinhamento deste ano, devido à ida a Tristão, foi dominado por especialistas em vida animal: com Craig, conhecemos o Blue Belt Programme, projecto com que o Governo britânico pretende criar uma zona de protecção marinha transoceânica com mais de quatro milhões de km2, abrangendo os seus diversos territórios ultramarinos; com Martin ficámos a saber dos desafios de converter as antigas estações baleeiras da Geórgia do Sul em santuários para pinguins-imperador, focas, elefantes marinhos e baleias.

Mas o programa pode, dependendo da lista de passageiros, incluir, como na nossa anterior viagem, David, um cientista da NASA que nos explicou sobre a importância dos aerossóis na modelação climática e o papel de Santa Helena e Ascensão no projecto. Ou o carismático Julian, o psicólogo forense que nos surpreendeu com uma palestra sobre perfis psicológicos de serial killers e que, descobrimos mais tarde, serviu de inspiração a uma série policial da televisão inglesa.

No entanto, o luxo maior que o navio oferece aos seus passageiros é outro: tempo. Dias e dias em que à nossa volta não há mais do que mar. Nem sombra de terra, nem vestígio de outros navios. Nada para nos distrair do facto de que estamos muito longe e temos muito tempo para pensar, para ler, para conversar.

Foto
José Filipe de la Fuente

Com o fim do RMS St Helena, chega ao fim a era das grandes viagens marítimas. A era dos Royal Mail Ship, de que este é o último em serviço, mas também a dos navios como única forma de fazer chegar passageiros e carga a lugares longínquos, como os que ligavam Inglaterra e a Nova Zelândia em viagens que demoravam seis semanas. Continuam, é claro, a existir navios de cruzeiro, de carga ou de expedição. Mas a escala e o propósito são muito diferentes. Aqui, numa viagem com pouco mais de 150 pessoas, entre passageiros e tripulação, todos se conhecem pelo nome. Aqui, a viagem é uma forma de chegar.

O que acontecerá ao navio, agora que o serviço para Santa Helena termina? Não conseguimos imaginar a mobília das cabines, as amuradas impecavelmente pintadas, os quadros com antigos mapas e gravuras, a chaminé com o imponente símbolo da Santa Helena Line a serem desmantelados para sucata numa praia do Bangladesh.

Talvez não tenha de ser assim. Aproveitamos um final de tarde no deck e bebemos uma cerveja com o comandante Anders, o protótipo do velho lobo do mar, nas mãos de quem está uma boa parte da decisão sobre uma segunda vida do RMS. Está a bordo para avaliar o navio e elaborar um parecer para uma companhia de navegação que considera a sua compra. Anders acha que as características únicas do RMS o tornam muito interessante para ligações entre ilhas do Pacífico ou em Cabo Verde e vai recomendar a apresentação de uma proposta.

Foto
José Filipe de la Fuente

Estamos prestes a chegar à Cidade do Cabo. Depois das despedidas emocionadas de alguns membros da tripulação para quem esta é a última viagem, depois de ter deixado Tristão da Cunha definitivamente para trás, o RMS regressa, dentro de alguns dias, para a despedida final a Santa Helena. Talvez alguém suba às alturas da Banks Battery e substitua a inscrição “Welcome RMS St Helena”, pintada em letras garrafais numa das antigas fortificações, por “Farewell RMS St Helena”.

Nós despedimo-nos hoje, felizes pelo privilégio e tristes com o seu final.  “Farewell RMS Santa Helena”. A nossa viagem termina aqui.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários