Tempos de clarificação

A partir de agora já não basta justificar o entendimento à esquerda por razões negativas. É preciso ir mais longe.

1. A propósito da actuação prosseguida por Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República têm-se dito e escrito coisas mirabolantes. Filósofos e cientistas chamados a opinar acerca da presidência dos afectos ofereceram-nos curiosas digressões intelectuais providas de múltiplos méritos, mas um pouco desatentas a um dado que me parece essencial — a excessiva valorização da dimensão afectiva no discurso e no debate políticos pode abrir as portas à prevalência da irracionalidade.

Faço uma leitura positiva do comportamento político adoptado pelo actual Presidente nos dois anos que leva de mandato. Agiu sempre com independência em relação aos demais agentes políticos, assegurou a devida cooperação com os outros órgãos de soberania e esteve presente nos momentos mais críticos do nosso percurso nacional. Por tudo isso mereceu e merece o reconhecimento da esmagadora maioria da população portuguesa, que se revê de tal modo na sua figura que esta se coloca mesmo já para além do limite da representação e entra no espaço simbólico da corporização do próprio sujeito político nacional. Como já aqui escrevi, tal facto seria perigoso se Marcelo não fosse o homem culto, o jurista eminente e o político probo que ele é. Tudo isso, contudo, não afasta o risco a que aludi anteriormente e que excede em muito a personalidade e o comportamento do Presidente da República. A transformação da afectividade numa categoria política central perturba a qualidade do debate democrático, prejudica o conteúdo da decisão política e permeabiliza o regime a discursos de natureza demagógica. Proporciona, desde logo, uma perniciosa amálgama entre dimensões de natureza completamente diversa: associam-se e confundem-se sucessos desportivos, êxitos em certames do tipo Euro-festival da canção e folclóricos reconhecimentos internacionais de supostas virtudes indígenas, com reais e sérias vitórias obtidas noutros campos da actividade nacional. Ora, esta situação pode revelar-se a prazo muito nefasta.

É certo que o ambiente de permanente celebração festiva com que a maioria parlamentar de esquerda agiu desde início concorreu fortemente para esta relativa dissolução da dimensão política no grande magma de uma afectividade neutral. Essa dissolução serviu durante algum tempo os propósitos de um governo empenhado em superar as suspeitas de uma ilegitimidade genética e apostado em projectar uma imagem salvífica por contraponto a uma anterior governação devidamente anatematizada como a encarnação do mal, da insensibilidade social e da incompetência na condução das políticas económica e orçamental. Não há como a efervescência dos afectos para adornar a ideia de instauração de um tempo radicalmente novo. O que é curioso é que haja filósofos e cientistas que caiam em tal esparrela.

Dois anos depois da eleição de Marcelo, por muito contra a corrente que a minha posição seja, e é-o sem dúvida alguma, considero que a hipervalorização do discurso da afectividade contém perigos sérios e pode concorrer para o desprestígio da dimensão política no que ela necessariamente encerra de racionalidade, distanciamento crítico, lentidão temporal e recato espacial. De resto, a forma como alguns agentes políticos estão apressadamente a tratar assuntos de transparência institucional e política constitui já um significativo sintoma de tudo aquilo a que atrás aludi. Marcelo nunca se deve esquecer que nem todos têm a sua inteligência, a sua cultura e a sua formação intelectual.

2. Até esta semana, a chamada “geringonça” era o produto de uma necessidade. Desde há uns dias passou a ser um acto de vontade. Isso muda muita coisa. Desde logo obriga a uma aclaração programática. Se a actual direcção do PS proclama que quer continuar a governar com o apoio dos partidos da extrema-esquerda parlamentar, recusando qualquer possibilidade de aproximação ao PSD, passa a ter o dever de explicitar com todo o rigor a natureza do programa que preconiza e que obviamente se não pode resumir ao minúsculo perímetro do entendimento alcançado há dois anos com o assumido objectivo de afastar o PSD e o CDS do poder. A partir de agora já não basta justificar o entendimento à esquerda por razões negativas. É preciso ir mais longe, apresentar um projecto de médio e longo prazo para o país associado a este acordo politico-partidário. Isso implica uma definição rigorosa de opções programáticas em áreas tão importantes como o modelo de desenvolvimento económico, o tipo de organização do Estado Social, a natureza da integração do país no processo europeu e as características essenciais de toda a política a prosseguir no âmbito da acção externa. Até agora, porque se enfatizavam as razões negativas, convivia-se com relativa facilidade com a ilusão de que é possível governar com o apoio de partidos de quem aparentemente se discorda em tudo o que a prazo é estrutural e decisivo. O tempo dessa ilusão está a chegar ao fim. Das duas, uma: ou o PS altera substancialmente aspectos fundamentais daquilo que foi até hoje a sua própria identidade, ou os partidos à sua esquerda renunciam a elementos determinantes das suas características doutrinárias presentes. A alternativa a esta clarificação é vivermos num estado pantanoso e permanentemente ilusório que pode suscitar epidérmicos aplausos momentâneos, mas nos afasta das questões essenciais do nosso futuro.

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