“Supernanny” e as terapias

Muitos assumem que o mal da "psicóloga" do programa se esgota na intrínseca atitude mediática, poucos se perguntam acerca da natureza da inerente "terapêutica", quando, a bem ver, nela reside o busílis da própria moral "transformativa"

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Parte da polémica circundando o programa da SIC Supernanny deve-se às questões éticas que resultam da exposição da criança, como da família, face a uma sociedade aparentemente pouco perdulária, mas poucos se indignam perante a miríade de questões que poderiam ser obviadas pela própria intervenção terapêutica. Muitos assumem que o mal da "psicóloga" do programa se esgota na intrínseca atitude mediática e de show, poucos se perguntam acerca da natureza da inerente "terapêutica", quando, a bem ver, nela reside o busílis da própria moral "transformativa".

A moral não é unicamente uma questão de "princípio", é também algo que revela um "fim", que implica, à partida, a transmudação de uma forma de equilíbrio num modo de equilíbrio "maior". O "terapeuta" actua enquanto agente de uma "interferência contextual", julgando muitos que ele possui recursos e respostas que fazem "melhorar" uma condição dada como se o clínico fosse um milagreiro e a terapia constituísse uma transmutação mágica. Destas ilusões dogmáticas e "placebetárias" vivem muitos (pseudo)terapeutas — é certo que existem "estudos", mas estes assentam em "médias" que nem sempre se aplicam às situações individuais.

Subsiste, igualmente, a questão da confiança: é importante fazer o "paciente" pensar que a solução é facilmente presumível, mas acontece comummente que o factor "emocional" seja "desiludido" por uma verdade maior que deveria, porventura, ter sido certificada. Mas nem esta verdade pode afiançar o controlo absoluto de uma situação terapêutica, e isso é também em si uma verdade, que, mesmo podendo não ser admitida exteriormente, talvez devesse ser assumida internamente. Ora, uma terapia nem sempre "equilibra", "melhora", uma situação, pode até nutrir uma nova crise. O que não implica que a mesma crise não possa ser útil a uma "melhoria" futura. Entendamos: a evolução de uma parte do sistema pode acarretar o desequilíbrio de outra parte, o que "melhora" agora pode correr mal no futuro, o que é preferível para um sujeito ou família pode piorar a conjuntura de outrem. Nada pode, na verdade, ser caucionado, ainda mais se tratamos de uma terapia "sistémica", familiar, que contende diferentes membros e níveis distintos.

A complexidade das "terapêuticas" tem obviado, por um lado, a multiplicação de modelos de intervenção que agem, muitas vezes, com base em preconceitos, e, por outro, a especificação máxima da situação em causa. Há que precisar ao máximo a condição clínica em jogo, isso permite reduzir algumas variáveis. Extorquir do Supernanny regras segundo um modelo do "faça você mesmo" poderá ter consequências graves. Já basta que se interfira de um modo mais ou menos danoso na vida das pessoas. Claro, o terapeuta parte de estudos, paradigmas, do seu bom-senso, nem sempre valorizando o aspecto do preconceito, da dinâmica interna do próprio profissional, do conflito mais ou menos pessoal, da (contra)transferência, elementos que relativizam a intervenção e que deveriam criar a dúvida.

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Luís Coelho é fisioterapeuta e escritor

Nada disto tem sido discutido. Há quem pense que estas questões são académicas, mas, bem vendo, são iguais a tudo o que ocorre na vida porque esta não é, por natureza, ética, e envolve conturbação constante do equilíbrio, transformação incessante, baque de morais distintas; o que preocupa as pessoas no respeitante ao Supernanny é aquilo que nos deveria preocupar constantemente no dia-a-dia porque todos nos expomos incessantemente às relações de poder, ao conflito de interesses e todos agimos enquanto terapeutas, ajudando a alimentar o caos moral do sistema onde se inclui uma família que se pensa, quiçá, mais problemática do que as outras.

Problemáticos somos todos nós e problemática é sempre a solução obviada, que é um eterno adiar de uma dinâmica que precisa da imperfeição para evitar sua desvitalização. Desvitalizados nos sentiríamos também se não discutíssemos uma suposta polémica, quando, a toda a hora, assistimos à exposição dos indivíduos em situação de crise, e desvitalizado me sentiria eu se não escrevesse este texto que possui um efeito não obrigatoriamente benigno.

É um mutável "adiar da morte" esta vida sem sentido onde, apesar de tudo, face a uma condição precisa, é possível intervir "especificamente". Uma terapia adequada pode e deve ser dialéctica, como dialéctica é a vida. Mas a dialéctica implica "interpretação" e esta é, na realidade, inextinguível. Certo é que, fixado o objecto, só há (supostamente) uma solução "mais perfeita", mas o terapeuta não é um deus algorítmico que possa acertar omniscientemente no alvo, pelo que deve manter a sua humildade.

Acontece constantemente que a imagem que os média dão da "psicologia" e das "terapias" é a de que há sempre uma resposta, que existem receitas perfeitas. Em particular, a psicologia tem sido mostrada na televisão de uma forma que a reduz a "auto-ajuda", não se diferenciando, muitas vezes, o psicólogo/psicoterapeuta de um guru, de um terapeuta de spa, reduzido a ser optimista e resolutamente "feliz". Que as pessoas não (re)conheçam a interioridade, a complexidão e a multiplicidade de "terapêuticas" como a psicanálise, a terapia cognitivo-comportamental, o behaviorismo, a terapia familiar, bem como a pluralidade de "fisioterapias" e recursos educacionais, é sintomático do mesmo que leva as pessoas a procurarem ajuda em terapeutas de reiki e cartomantes e a buscarem soluções na (pseudo)cultura redutora.

Bem sabemos o quanto já enjoam os terapeutas "espirituais" que prometem "grandes esperanças" (Dickens) a tudo e todos. A ciência, claro, não pode, pelo menos por enquanto, prever completamente o efeito do meio transfigurador, o fluxo das agressões sociais; pode, apenas, tentar preparar o melhor possível o indivíduo para colher e dinamizar essas agressões.

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