António Pelarigo e Germana Tânger

No amor de António Pelarigo (1953-2018) pelo fado e no amor de Germana Tânger (1920-2018) pela poesia tivemos algo do que de melhor habita o espírito português, a paixão pela arte.

Não foi um homem dos sete instrumentos, mas dele poderá dizer-se o que diz a canção de Sérgio Godinho: “Às duas por três chegou/ e às duas por três partiu.” Tal a rapidez com que se abeirou da ribalta fadista para dela depois se eclipsar. Mas não seguiu “para a rosa-dos-ventos”, contrariando a canção, porque a sua marcha parou contra vontade. António Pelarigo deixou-nos no dia da morte de Madalena Iglésias e talvez por isso a sua morte não tenha tido, na imprensa, o merecido eco. Não por ser uma estrela, ou aspirar a tal estatuto, mas precisamente por, nos seus quarenta anos de fado amador, ter apenas amado o fado no mais puro sentido da palavra. Nascido no Ribatejo, a 30 de Maio de 1953 (embora no seu BI constasse 30 de Agosto, para os pais não pagarem multa pelo atraso no registo), só aos 61 anos gravou um disco de que se orgulhou e que trazia na capa somente o seu nome. Foi José Cid, seu amigo (o mesmo Cid do Quarteto 1111 e dos festivais da canção), quem o convenceu. E no lançamento, no dia 9 de Outubro de 2014 (no Speakeasy, em Lisboa), estiveram vários fadistas, como Carlos do Carmo e João Ferreira-Rosa. Aos microfones da SIC, disse Pelarigo nesse dia: “Agora estou aposentado, mas fiz várias coisas. Trabalhei na agricultura, nos campos, trabalhei em oficinas ligadas à construção civil, quando era mais novo fui também caixeiro-viajante e cheguei a ser profissional do fado quinze dias, mas ao fim de quinze dias... Porque é muito cansativo cantar todos os dias numa casa de fados.” As pressões que teve, para se profissionalizar no fado ou gravar discos, ignorou-as. “Eu nunca mandei em ninguém mas também nunca deixei ninguém mandar em mim.” Isso não o impediu de passar décadas em “fadistices”, como ele dizia. Por pura paixão. Agora que um cancro o silenciou, resta-nos lembrar a sua voz do modo como ele a deixou no seu disco de 2014 – que ele gravou, escrevi à data no PÚBLICO, “como se já tivesse gravado cem.” Nessa entrevista dizia, das suas origens: “Sou de uma aldeia piscatória, descendente de avieiros, pescadores. E os pescadores todos cantam, mesmo quando estão zangados cantam, lá na labuta deles.” E assim cantava ele. Num dos fados que gravou, ouvimos-lhe estas palavras: “Mas quando a morte chegar/ Eu sei que hei-de voltar/ Ao verde do meu caminho.” A ele voltou no dia 16 de Janeiro de 2018, deixando-nos de herança o seu fado.

E esta semana, dia 22, uma outra morte, epílogo de uma vida longa e justamente premiada: Maria Germana Tânger. Nascida em Lisboa em 1920, no dia 16 de Janeiro (o mesmo dia em que agora morreu Pelarigo), diseuse notável e divulgadora da poesia portuguesa, tudo o que tinha a dizer sobre si resumiu-o no livro Vidas Numa Vida (Manufactura, 2016), relato de ocasiões, nomes e acontecimentos que a marcaram, desde as origens dos seus ancestrais até às cidades onde viveu e triunfou (Lisboa, Paris, Rio de Janeiro) ou aos poetas com os quais privou, e foram tantos. Testemunha e relatora de tragédias pessoais, bem como de relações e fortes amores, ela mesma neles se situou, descrevendo-se filha de professores: “Nasci de um grande amor. Os meus pais eram ambos viúvos e tinham ambos 40 anos. Adoravam-se.” Três homens serão fulcrais na sua vida: o pai, que ela adorava, e que perdeu aos 9 anos; Almada Negreiros, que a empurrou para a poesia; e Manuel Tânger, fundador do Teatro da Faculdade de Letras, com quem ela casou em 1948 e ao lado de quem se abriu ao mundo. A poeta Cecilia Meireles, de quem se tornou amiga, dedicou-lhe um poema; e ela retribuiu-lhe o gesto, quando Cecilia morreu, no Rio, em 1964, para desgosto de todos. Mário Cesariny, ao dedicar-lhe um livro seu, chamou a Germana Tânger “poeta dos poetas”; e Fernanda de Castro, numa carta datada de 1962, escreveu-lhe: “Para muitos, ‘Arte de Dizer’ significa papaguear versos, pior ou melhor, mas para si é bem uma arte a que a sua sensibilidade dá o máximo de beleza e emoção.” E agradecia-lhe o facto de transmitir aos seus alunos “um pouco desse maravilhoso segredo de ‘acrescentar poesia à poesia’.”

Eis o que unirá, na vida, António Pelarigo e Germana Tânger: no amor dele pelo fado e no amor dela pela poesia (sem que sejam comparáveis, porque ela foi única e fez pela cultura e pela língua portuguesa o que só raros fizeram) tivemos algo do que de melhor habita o espírito português, a paixão pela arte.

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