O mais duro combate de Lula tem lugar num tribunal

O ex-Presidente do Brasil conhece nesta quarta-feira a sorte de um recurso a uma sentença de nove anos e meio de prisão. Se perder, Lula fica proibido de concorrer às próximas presidenciais. Num país em sobressalto, o julgamento de hoje pode gerar um novo choque sísmico na política brasileira.

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No dia em que se joga o futuro de Lula e do Brasil, a cidade de Porto Alegre estará hoje em estado de alarme REUTERS/Ueslei Marcelino

Luís Inácio Lula da Silva resistiu à pobreza extrema, sobreviveu às pressões e à prisão no tempo da ditadura militar, aguentou derrotas e golpes baixos em várias campanhas eleitorais e quase foi ao fundo quando o seu Partido dos Trabalhadores (PT) se envolveu em escândalos de corrupção como o do Mensalão. Esta quarta-feira, porém, o líder histórico da esquerda brasileira confronta-se com o mais duro combate da sua biografia política. O Tribunal Regional Federal n.º 4 (TRF4), com sede em Porto Alegre, no Sul do Brasil, vai analisar o recurso a uma sentença da primeira instância que o condenou a uma pena de nove anos e meio de cadeia por alegados actos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Se os três juízes do TRF4 confirmarem a sentença, Lula arrisca-se não apenas a perder a liberdade: de acordo com a Lei Ficha Limpa que o seu Governo aprovou em 2010, ele ficará igualmente impedido de concorrer às próximas eleições presidenciais, marcadas para Outubro deste ano.

Com tantas coisas em jogo, a sessão judicial de hoje tornou-se um acontecimento decisivo para um país habituado a viver em permanente sobressalto. A revista Exame escrevia por estes dias que estavam em causa “as eleições de 2018, o futuro do PT, e do Brasil”. A confirmação, ou o agravamento da sentença pedido pelo Ministério Público, deixaria Lula, o candidato que lidera todas as sondagens de opinião, fora das presidenciais; sem Lula, o PT parece incapaz de se apresentar como uma alternativa credível, até porque boa parte das suas elites históricas estão a braços com as investigações ou as condenações da operação Lava-Jato, um gigantesco esquema de corrupção articulado em torno da petrolífera estatal, a Petrobras; depois, a condenação de um ex-Presidente, que é ainda o político mais popular do Brasil, não deixaria de acentuar as clivagens políticas num país já por si muito dividido e de aumentar a pressão sobre um sistema judicial criticado por “perseguir” a esquerda e de ser tolerante com as suspeitas de corrupção da direita próxima do Presidente Michel Temer.

Lula foi acusado e condenado no tribunal de primeira instância em Curitiba pelo juiz Sérgio Moro com base numa derivação do processo Lava-Jato que apontava ao ex-Presidente “um papel relevante no esquema criminoso” montado em torno da Petrobras. O tribunal de Curitiba acredita que Lula recebeu um apartamento triplex na praia de Guarujá, no litoral do Estado de São Paulo, como pagamento de um suborno pela concessão de três contratos da Petrobras à construtora OAS. A produção de prova, porém, esteve longe de chegar a resultados indiscutíveis. O tribunal nunca apresentou documentos capazes de certificar que Lula foi alguma vez dono desse apartamento. E, já depois da condenação de Lula, em Junho do ano passado, um tribunal de Brasília penhorou o triplex para garantir o pagamento de dívidas da OAS a uma empresa de materiais de construção — ou seja, atestou que a propriedade é efectivamente da construtora.

“Julgamento político”

A defesa de Lula pega nestas alegadas falhas e acrescenta-lhe um conjunto de sinais vindos do sistema judiciário para chegar à conclusão que o ex-Presidente está a ser alvo de um “julgamento político” e “parcial”. "O julgamento feito por Moro envergonha o Brasil ao ignorar provas contundentes de inocência", alega a defesa. "Nenhuma prova crível da culpa de Lula foi produzida durante o processo”, acrescenta. As declarações de Moro no momento da acusação, quando denunciou uma “propinocracia” (propina é suborno no léxico político-judicial do Brasil) na qual Lula seria o “maestro de uma grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos”, são para os militantes da esquerda um programa político para o qual os juízes procuraram um conteúdo judicial.

Outros acontecimentos serviram para que o PT reforçasse esta estratégia de combate à Justiça. Depois da condenação, o presidente do TRF4, Carlos Thompson Flores Lenz, afirmou numa entrevista ao jornal Estado de São Paulo que a sentença de Sérgio Moro “é tecnicamente irrepreensível, fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos e vai entrar para a história do Brasil”, para depois admitir que não tinha lido o acórdão. A chefe de gabinete do juiz que preside ao TRF4 publicou um post no Facebook promovendo uma petição pública onde se pedia a condenação de Lula. Depois, para o PT é estranho que a justiça brasileira, por natureza lenta, fosse capaz de agendar a sessão de hoje apenas quatro meses depois da decisão da primeira instância. O objectivo desta suposta pressa seria travar a possibilidade de Lula apresentar a sua candidatura no Tribunal Eleitoral até ao dia 15 de Agosto.

Para o PT e para os apoiantes de Lula, se o julgamento é “político”, a forma de o enfrentar terá de ser através da política. "Na política nós sabemos brigar”, prometeu a senadora e presidente do PT, Gleisi Hoffmann. E a “briga” pode ser dura — Gleisi Hoffmann chegou a dizer: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar.” Dias depois, porém, Gleisi suavizou o discurso, mas a sua declaração sinaliza a convicção profunda de muitos militantes. Apesar de o julgamento decorrer em plenas férias de Verão no Hemisfério Sul, milhares de manifestantes do partido são esperados hoje em Porto Alegre — assim como milhares de opositores a Lula, o que criou um problema de segurança que levou o presidente do tribunal a considerar a possibilidade de mobilizar o Exército. Porto Alegre estará esta quarta-feira em estado de alarme.

Preparando-se para uma longa luta nos tribunais, o PT abriu nove “Comités de Defesa da Democracia e do direito de Lula ser candidato” e acelerou a mobilização de militantes nas grandes cidades. Nesta acção, obteve o apoio de partidos de esquerda como o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), o PSB (Partido Socialista) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B). A campanha a favor do ex-Presidente estendeu-se entretanto para fora do país. O manifesto “Eleições sem Lula é fraude”, mobilizado pelo ex-ministro dos Estrangeiros Celso Amorim, foi subscrito por quatro ex-Presidentes da América Latina, pelo ex-primeiro ministro italiano Massimo D’Alema, por Yannis Varoufakis ou pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos e por centenas de intelectuais e políticos.

Para o “lulopetismo”, o julgamento é o segundo momento de um “golpe” que a direita montou para controlar o poder (o primeiro episódio foi a destituição da Presidente Dilma Rousseff). Os militantes da esquerda dizem-se vítimas da Justiça, dos principais jornais e televisões, com destaque para a Rede Globo. Lula garantia a expectativa de superação do golpe. Todos os estudos de opinião indicam que na primeira volta derrotaria facilmente o seu opositor mais directo — Jair Bolsonaro, da extrema-direita. E na segunda volta derrotaria quer Geraldo Alkmin, governador do poderoso Estado de São Paulo e provável candidato do PSDB, ou a ex-senadora Marina Silva. Uma eventual derrota judicial esta quarta-feira em Porto Alegre vai baralhar as regras do jogo e adensar a incerteza que paira sobre as eleições.

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