Silêncio: direito e dever (I)

Eis um de muitos exemplos que evidenciam quão o bom silêncio anda pelas ruas da amargura.

É melhor ficar em silêncio e ser […], do que dizer e não ser
(Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios)

Acabei de ler um notável livro no qual é entrevistado o cardeal guineense Robert Sarah, e que muito me fez reflectir. O seu título é bem sugestivo: A força do silêncio contra a ditadura do barulho (Princípia Ed., Abril 2017).

Há dias, estive num estádio de futebol. Antes do jogo, um escasso minuto para homenagear simbolicamente um jovem atleta de 21 anos que sucumbiu à doença. Sessenta segundos nos quais não houve silêncio. O costume, infelizmente. Nessa altura, voltei a Robert Sarah e ao seu livro. Porque para muitos este momento é uma eternidade que tem de ser anulada pela trivialidade do ruído, tenha ele a forma de palmas e palminhas miméticas tão absurdas quanto indigentes, tenha ele a boçalidade da falta de respeito pelo silêncio da morte. A meu lado, muitos jovens que nem se deram ao trabalho de, ao menos, se levantarem e respeitarem um outro jovem ceifado nos seus sonhos. Hoje, perante a materialidade compulsiva e a tecnologia invasora, o bom silêncio é vandalizado. Pior, deixou de se aprender em casa, na rua e na escola, não tem lugar na relação, é corrompido pela impureza da sua ausência. Neste caso, nem o silêncio diante da morte, que tudo deveria dizer no respeito de nada se dizer.

Eis um de muitos exemplos que evidenciam quão o bom silêncio anda pelas ruas da amargura, perdendo irremediavelmente no confronto e na competição com muitos barulhos. O que hoje mais parece contar não é a magnanimidade do silêncio respeitado, mas antes a sua ostensiva violação, mesmo que através de sons ocos, de interjeições vazias e de palavras perdidas no deserto de ideias. Vivemos atropelados pela “incorrecção” do silêncio que — pasme-se! — quase precisa de explicação ou até de justificação para se “ouvir”.

Tudo gira em nome do ruído. Quer dizer, da aparência que está para além do som. Que, não raro, coabita com o mau silêncio da omissão ou da indiferença, que mais não é que uma forma silenciosa de prolongar o ruído.

O silêncio não é o exílio da palavra, porque a palavra também está contida no silêncio. O silêncio não é a solidão, porque a solidão quase sempre medra na ausência de silêncio. O silêncio não é o elogio do solipsismo, porque o silêncio pode ser com o outro e tantas vezes pelo outro.

Como disse o cardeal, “o silêncio é indispensável para a escuta da música (silenciosa) de Deus”. Por isso, a oração pode dispensar a palavra, mas jamais prescinde do silêncio. Assim como na tradição religiosa, a essencialidade do deserto também reside na profundidade de se ser em silêncio.

“Falar? Sim, para saber se somos do mesmo silêncio”, já perguntava há décadas a escritora norte-americana Natalie Clifford Barney (1876-1972), numa síntese paradoxalmente construída por vocábulos aparentemente antonímicos: palavra no silêncio e silêncio pela palavra. O contrário do que se passa hoje na nossa cultura rendilhada de ínterins: fala-se para se fingir que não se é do mesmo silêncio, ou não se fala para se aparentar ser do mesmo silêncio. Ou não se tem sequer silêncio, apenas palavras que morrem por ausência de silêncio. Sobra em coreografia, o que escasseia em autenticidade. E quantos silêncios contêm mais palavras inaudíveis e quantas palavras se dissolvem no silêncio que está por detrás delas? O que mais conta: o silêncio entre palavras ou as palavras entre silêncios? Ou será, como escreveu Mia Couto, que o silêncio não é a ausência da fala porque é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra? (continua)

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