Hugh Masekela (1939-2018), trompetista da liberdade

O pai do jazz sul-africano, como lhe chamou o Presidente Jacob Zuma, era também uma celebrada figura da luta anti-apartheid.

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Hugh Masekela tinha 78 anos Reuters/Andrea De Silva

O som do apito de um comboio em marcha subiu à boca de Hugh Masekela incontáveis vezes durante a sua actuação no Festival Músicas do Mundo, em 2012, numa das suas últimas passagens por Portugal – depois desse concerto no Castelo de Sines, apenas uma posterior visita a Lisboa para tocar, em 2015, no Lisboa Mistura. Sempre que afastava a boca da trompete, o músico responsável por dar uma forma e um rosto ao jazz sul-africano evocava a dedicatória que dirigira, minutos antes, a todos os africanos que viajaram de comboio dos mais variados países para trabalhar nas minas em redor de Joanesburgo ao longo do século XX. A imagem parece hoje perfeita para falar deste músico que nunca deixou que a música silenciasse a sua voz política, e que desapareceu esta terça-feira, aos 78 anos, vítima de cancro na próstata.

Conta a lenda que o jovem Hugh Masekela, nascido em Witbank, em 1939, terá ficado impressionado ao ver Kirk Douglas – num papel directamente inspirado pelo músico Bix Beiderbecke – tocar trompete no filme de Michael Curtiz Young Man with a Horn. Terá sido então que conseguiu convencer um dos seus professores, o padre e activista anti-apartheid Trevor Huddleston, a oferecer-lhe um instrumento, na condição de não se meter em sarilhos. Masekela tinha 14 anos e não tardou a afirmar-se no meio jazzístico nacional, tendo gravado, logo em 1959, o primeiro álbum de uma banda de jazz sul-africana com os Jazz Epistles (da qual fazia também parte o reputado pianista Abdullah Ibrahim, que na altura respondia pelo nome artístico Dollar Brand), moldada à imagem dos Jazz Messengers de Art Blakey.

A digressão dos Jazz Epistles seria, no entanto, abortada na sequência do massacre de Sharpeville, em que a polícia matou 69 protestantes negros. A resposta do ANC (African National Congress) e do PAC (Pan African Congress) resultou na declaração de uma nova postura de luta armada contra o regime do apartheid. O governo, receando que a escalada de violência rebentasse por todo o país, proibiu todos os ajuntamentos populares, o que, naturalmente, passava a inviabilizar qualquer desejo de partilhar a música com o público que se tinha juntado em redor daquela pioneira formação.

A alma inquieta de Masekela não lhe deu muito descanso depois disso, segundo recordava a revista Jazz Wise a propósito de uma entrevista em 2010, e o trompetista terá decidido quase de imediato, em 1960, tinha então 21 anos, pôr-se a caminho dos Estados Unidos, em busca da terra dos seus heróis musicais, como Dizzy Gillespie e Duke Ellington – que tinha crescido a ouvir no gramofone dos tios. Para conseguir deixar a África do Sul, num exílio que se prolongou por três décadas, Masekela terá obtido o passaporte subornando um administrativo com uma garrafa de brandy.

Depois de se inscrever na Manhattan School of Music, em Nova Iorque, Masekela infiltrou-se na palpitante cena jazzística daquela época, não lhe sendo difícil chegar ao convívio com eminências absolutas do instrumento, como Dizzy e Louis Armstrong, responsáveis por incentivar o sul-africano a desenvolver o seu próprio estilo, chamando-lhe a atenção para a importância de se alimentar das suas influências africanas e não se deixar tragar pelo jazz de cunho norte-americano. Foi também na América que se casou com Miriam Makeba (1932-2008), cantora, activista dos direitos civis e ícone da luta contra o apartheid; conheceram-se nos ensaios da ópera jazz King Kong, um musical ao estilo da Broadway, estiveram juntos de 1963 a 1968.

Mais uma vez, a sua afirmação foi meteórica e, em 1967, Hugh Masekela surgiria no mítico Monterey Pop Festival, lado a lado com nomes como Janis Joplin, Otis Redding, Ravi Shankar, The Who e Jimi Hendrix. Passados nove anos, mais um massacre do regime sul-africano abanaria a sua música. Terão sido várias centenas as vítimas da carga policial no Soweto, numa resposta tão violenta aos protestos estudantis em Joanesburgo que reclamavam contra a introdução do afrikaans nos estabelecimentos de ensino que a única réplica que Masekela conseguiu fazer escutar foi a da sua trompete a entoar Soweto blues, tema que se tornou um hino anti-apartheid desde esse momento.

A Soweto blues, Hugh Masekela juntaria ainda Bring him back home (Nelson Mandela), mais uma composição de protesto a ficar para sempre associada à luta pela igualdade e pela deposição do regime, composta em 1985 quando recebeu um cartão de aniversário enviado pelo encarcerado líder do ANC.

Nesses temas emblemáticos, assim como em quase toda a sua música, aquilo que se ouve é um jazz fogoso, permeável ao funk e ao afrobeat, a ritmos e cânticos sul-africanos, tocado sempre com a inquietude de quem punha as suas convicções e a luta por um mundo mais justo em cada nota. Jacob Zuma, Presidente da África do Sul, lamentou a perda de um homem que “carregava a tocha da liberdade”. E assim era – da sua trompete, saía um sopro incandescente, feito de um fulgor combativo e inconformado.

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