A relação Portugal-Angola em julgamento

Combater a corrupção quer em Portugal, quer em Angola, requer que a justiça tenha a legitimidade e a independência para investigar vice-presidentes, primeiros-ministros ou procuradores da República, e que a democracia tenha a devida consistência para resistir a qualquer abalo judicial

A justiça portuguesa tem toda a legitimidade para investigar e acusar um ex-vice presidente de Angola — ou qualquer outro cidadão estrangeiro em Portugal — por crimes supostamente cometidos em território nacional. O Código Penal português prevê que os nacionais que cometam crimes no exterior possam ser julgados em Portugal, o que deveria permitir que outros países pudessem fazer o mesmo com os seus cidadãos, como dizia esta semana no PÚBLICO Marinho e Pinto. Só que, infelizmente, a justiça angolana não tem dado provas de independência face ao poder político. Seria uma irresponsabilidade da parte portuguesa, por muito que isso favorecesse a urgente normalização das relações diplomáticas e agradasse à nomenclatura de ambos os países, abdicar de julgar o caso em que um vice-presidente angolano é suspeito de corromper um procurador português. A tenebrosa saga de que Luaty Beirão e restantes activistas foram alvo não são bons pergaminhos para qualquer sistema judicial.

As transformações que o actual presidente angolano tem imposto na hierarquia do Estado, ao desafiar a teia de interesses da família que governou o país nos últimos 38 anos, fazem crer que estamos diante da mudança mais profunda em Angola após a tomada do poder pelo MPLA. Para que essa transição não seja uma breve operação de cosmética, e não se limite a uma data de substituições na cúpula do Estado, era recomendável que ela chegasse à própria justiça, de modo a que se crie o respeito mútuo de que falava Joana Marques Vidal. De modo a que não se entenda uma investigação judicial como a “ofensa” de um regime a outro. Combater a corrupção quer em Portugal, quer em Angola, requer que a justiça tenha a legitimidade e a independência para investigar vice-presidentes, primeiros-ministros ou procuradores da República, e que a democracia tenha a devida consistência para resistir a qualquer abalo judicial.

A independência judicial não pode ser sacrificada em nome do interesse de um ou de vários governos, ou mesmo em nome de um suposto interesse diplomático. Isso seria admitir que o exercício e aplicação da justiça poderia variar em função da importância do arguido ou do país em causa — que a operação Fizz teria uma atenção diferente da da operação Marquês. Transformar o caso Manuel Vicente no julgamento das relações entre Portugal e Angola nem é justo nem diplomático.

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