E se a Assembleia da República não tivesse advogados?

Vi, um a um, os perfis dos parlamentares em funções. Em 230 deputados, há 65 advogados e juristas, alguns com a cédula suspensa na Ordem.

Nos meus anos de escola primária, a professora Ema Tabuada, que me acompanhou da primeira à quarta classe (na designação de então), utilizava uma técnica específica para nos facilitar o início das redacções: começavam quase sempre por "se eu fosse...".  As variações foram imensas, porque a formulação, ainda que simples, dava para tudo. Se eu fosse a Primavera, se eu fosse um animal, se eu fosse um país, se eu fosse uma árvore, se eu fosse Presidente da República. É possível desenvolver as teorias mais imaginativas, começando sempre por aquelas três palavrinhas.

O título que introduz estas linhas é inspirado nesse exercício de escrita que fiz durante anos. "E se a Assembleia da República não tivesse advogados?"

Numa altura em que a comissão eventual da transparência - sobre a qual é preciso dizer que se reuniu muitas vezes à porta fechada e só na presença dos coordenadores dos grupos parlamentares -, discute o que fazer quanto ao regime de incompatibilidades e impedimentos dos deputados, é interessante pensar na resposta à minha pergunta.

As propostas que estão a ser debatidas não obrigam os advogados a deixarem o Parlamento. Podem criar-lhes um regime mais apertado, com novos formulários de declarações de conflito de interesse, por exemplo, e regras mais restritas nos processos em que há envolvimento dos seus escritórios com o Estado. No limite, há partidos que defendem que a actividade de deputado deve ser exercida em regime de exclusividade, mas isso está longe de ser uma ideia consensual.

Portanto, as leis em discussão são ligeiramente mais restritivas quanto aos impedimentos e incompatibilidades, mas não atiram os deputados para fora do Parlamento, nem os obrigam a escolher entre os escritórios e a Assembleia, ainda que alguns deles sintam que é isso que está a acontecer. E a verdade é que um Parlamento sem advogados não passaria a ter menos indivíduos a legislarem em causa própria, não deixaria de defender cegamente os interesses dos partidos e, sobretudo, não teria mais ética.

O Parlamento precisa de advogados. Sempre precisou. É lá que as leis são feitas e não é indiferente serem bem ou mal feitas. Estou a partir do princípio que os advogados sabem mais sobre redacção de leis do que os especialistas noutras matérias, o que tem alguma validade como argumento. Também sabem melhor como contornar a legislação em caso de diferendo futuro, é certo. Mas é aí que entra novamente a ética.

Na Assembleia, um advogado tem de saber, acima de tudo, ser jurista e funcionar como uma espécie de defensor oficioso do povo e da Constituição, o que é muito diferente de estar lá como representante dos interesses de uma qualquer entidade privada - e isso não é válido apenas para advogados. Se não está a actuar assim - aparentemente, até no Parlamento há quem concorde que há casos desses, ou não estaríamos há meses a discutir alterações ao estatuto -, também não são novos formulários de declarações de interesse que vão mudar o estado das coisas.

Quem parece antecipar esta questão, mesmo não estando na Assembleia, é Rui Rio. No capítulo “Por uma ética da acção política” da sua moção, lê-se a seguinte frase: “Os partidos políticos deixaram de controlar o recrutamento dos seus quadros, dando azo à afirmação dos poderes fáticos no escrutínio da sua actividade política. O serviço público exige independência, isenção e competência e não se pode transformar numa alavanca para interesses privados, próprios ou alheios.” 

Contra isso, o sucessor de Pedro Passos Coelho tem uma proposta: “O PSD deverá dar o exemplo na forma como recruta e seleciona os seus candidatos (...), mas também na avaliação rigorosa, sistemática e isenta que faz do seu desempenho.”

Avaliação de desempenho de político -deputados, autarcas ou até governantes é uma ideia inédita. Resta saber como reagirão os parlamentares do partido, os advogados e os outros a este novo princípio inscrito na moção estratégica do líder eleito.

Já agora, vi um a um os perfis dos parlamentares em funções. Em 230 deputados, há 65 advogados e juristas, alguns com a cédula suspensa na Ordem. Do total, 33 são do PSD, 16 do PS, 11 do CDS, três do PCP e dois do PEV. Só o Bloco não tem advogados. Nenhuma outra profissão está tão bem representada em São Bento.

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