Geração Tide

Mas o meu corpo está em convulsões e, de caminho, sem conseguir respirar, acho que engoli qualquer coisa, detergente, quem sabe, não, detergente não, mas eu já nem sequer consigo pensar

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Malta, aqui estou eu, é sábado de manhã, a minha mãe está a dormir, o meu pai ainda não chegou a casa e a minha irmã mais velha mata-me se sabe que estou a usar o telefone dela no FaceTime, não com uma, não com duas, não com três, mas com quatro cápsulas de Tide na boca.

Fecho a boca, trinco as cápsulas e detergente espirra por todo o lado, malta, dizem vocês do lado de lá, o “Bocas” é o maior, e os likes a cair, os emojis a cair, espero que a Cátia esteja a ver, sou o maior, o detergente espirra por todo o lado, para o telefone, para as paredes, para a porta da casa de banho, para os olhos, para a boca, para os pulmões, os olhos incham de dor, saltam-me das órbitas, a barriga contorce-se e eu faço força para não me dobrar para a frente enquanto faço a mesma força para segurar o telemóvel à frente da cara, o braço a tremer, detergente sai-me pela boca mas não vacilo, não vacila, não vacila, os maxilares a tremer e a boca a arder, babo-me em detergente, espirro-me em detergente e, ao mesmo tempo que faço força para engolir tudo, deito tudo cá para fora mais o frango da minha mãe de ontem, dói-me a barriga e não consigo ver, escorrego em tudo o que há no chão e caio no chão com o telemóvel de lado, em directo para a malta, em directo para a escola, em directo para o mundo hoje à noite, acho que vocês já perceberam que isto não vai acabar bem, eu é que ainda não, até porque a minha mãe está a bater à porta mas eu fechei a porta à chave e a chave está no meu bolso.

Mas o meu corpo está em convulsões e, de caminho, sem conseguir respirar, acho que engoli qualquer coisa, detergente, quem sabe, não, detergente não, mas eu já nem sequer consigo pensar, os braços abertos, o peito aberto, a boca aberta a tentar agarrar o ar, os olhos abertos a querer ver o ar, mas sem ver o ar, a minha mãe aos pontapés à porta e a minha irmã a dizer que me mata, o meu pai finalmente em casa e a porta rebenta a pontapé, o meu corpo a caminho do hospital, quando chegar à escola na segunda-feira vou ser um herói e toda a gente vai ver, eu é que não, já não vejo nada, o óbito foi declarado à chegada ao hospital, parece que ninguém morre nas ambulâncias, nem eu, e a minha irmã que me mata mesmo depois de morto, só espero que a Cátia esteja a ver.

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