Gestos do passado

Um concerto estimulante, com canções de Wagner e Berlioz interpretadas por Elisabete Matos e com a apresentação de uma nova obra do compositor Nuno Côrte-Real para soprano e orquestra, que levanta algumas interrogações sobre a relação que podemos ter com a música de outros tempos.

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Elisabete Matos Nuno Ferreira Santos

O Centro Cultural de Belém iniciou com este concerto de sábado passado um ciclo intitulado De Zeus a Varoufakis – A Grécia nos destinos da Europa. Um ciclo com música, teatro, dança, literatura, oficinas e debates para pensar a Europa de hoje a partir de uma revisitação da Grécia do passado e da actualidade.

O concerto inaugural trouxe ao CCB a Orquesta Sinfónica de Castilla y Léon e a cantora Elisabete Matos. A começar ouvimos as Canções Helénicas de Sophia (estreada “absolutamente” no dia anterior em Torres Vedras), uma nova composição de Nuno Côrte-Real, que dirigiu também todo o concerto. Um início prometedor, com os timbales da orquestra a chamarem primeiro as cordas graves e depois os violinos, abrindo espaço para a entrada da voz da “estrela” da noite, Elisabete Matos.

As quatro canções de Nuno Côrte-Real são deliberadamente pequenas e simples, tentando captar a clareza e a limpidez que Sophia de Mello Breyner Andresen procurava para a sua poesia. Até aí, tudo certo. Mas as questões complicam-se quando ouvimos as quatro canções lançarem gestos musicais “de outro tempo”. Não da Grécia Antiga, mas de há dois séculos atrás, procurando reatar laços com uma linguagem que não é de todo contemporânea.

Estas canções “sedutoras” de Nuno Côrte-Real obrigam a uma reflexão sobre a pertinência e a actualidade de certos tempos e gestos. Poderíamos dizer apenas que é música “ultrapassada”, mas corremos o risco de ficar presos à ideia de que há progresso em arte, o que é equívoco. O neo-romantismo destas canções de Nuno Côrte-Real é de hoje, é destes nossos tempos. E quantas vezes não ouvimos já obras que copiam os gestos das vanguardas mas que são surpreendentemente passadistas? Em que ficamos, então?

A questão é que ser contemporâneo não é ser apenas do tempo actual. A criação artística contemporânea contém possibilidades e responsabilidades: questionar a relação com o seu tempo, com a sociedade, com as formas de escuta e de interpretação, e com os próprios materiais da música (sons, palavras, etc). Procurar caminhos novos para a expressão, responder às transformações sociais, descobrir formas diferentes, propôr uma atitude (ou várias), qualquer compositor tem de, consciente ou inconscientemente, afrontar essas tarefas. Podemos dizer que Nuno Côrte-Real o faz, à sua maneira. E responde ao mundo actual, no caso destas canções, procurando um refúgio no búzio, como se escutasse sons do passado em nostalgia. Procura dentro dos caminhos velhos, e escolhe uma atitude de sedução sonora por via de gestos antigos. Sem o ímpeto romântico de um Beethoven que também fazia parte do programa desta noite (A Consagração da Casa, uma obra de circunstância mas onde o compositor enfrenta o seu tempo e questiona os materiais à sua disposição). Sem a moderna afirmação de independência de Wagner cujos Wesendonck Lieder ouvimos numa direcção extremamente cuidada de Côrte-Real e muito bem interpretados por Elisabete Matos e pela Orquestra Sinfónica de Castela e Leão. E sem a experimentação orquestral arriscada e inventiva de Berlioz que se sente em Les Nuits D'été, que foi, aliás, o ponto alto da noite para Elisabete Matos, numa interpretação excelente, juntamente com a orquestra (particularmente em Le spectre de la rose).

Na música não há só dois caminhos lineares, um para trás e outro para a frente. Mas há relações diferentes que se estabelecem com os tempos. As Canções Helénicas de Sophia olham lamentosamente o passado irrecuperável, buscam eternidades, lançam âncora na mágoa e numa beleza antiga, mas não buscam no que passou formas novas de ver a realidade transfigurada (hoje!), nem enfrentam a “meticulosa beleza do real” dos poemas de Sophia.

Beethoven brincava com os barrocos, mas era do seu tempo, não fugia para outro. Wagner admirava Beethoven mas exigia ser absolutamente ele próprio. Berlioz usava todos os materiais do passado para orquestrar inventando de novo. Atitudes diferentes perante o passado, mas que não se refugiavam das responsabilidades do presente.

 

PS: Era escusado o apelo ambíguo do maestro, no final, dizendo que “o que interessa é a união”, perante uma orquestra de Castela e Leão, nos tempos políticos complexos que correm agora em Espanha, com repressões graves e debates difíceis. Há problemas sérios que não merecem apenas cosmopolitismo bem intencionado.

 

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