Carlota Joaquina foi às compras (e foi responsável por 15% das despesas de Estado)

Há sensivelmente 200 anos, a rainha fez uma avultada compra de peças parisienses no valor de 1.103.709,13 reais.

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Daniel Rocha
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Já de luvas brancas na mão, Inês Ferro, directora do Palácio Nacional de Queluz, prepara-se para folhear uma das mais recentes aquisições ao espólio: um documento datado a 1816 onde estão registadas as compras que a rainha Carlota Joaquina fez em Paris, a partir do Rio de Janeiro, onde vivia em fuga com a família real e corte portuguesas desde 1808 – tendo embarcado no final do ano anterior, antes da primeira invasão francesa de Portugal.

De barco, chegaram ao Rio de Janeiro oito caixas. Entre largas centenas de peças – cujo número total ainda não foi contabilizado –, contam-se 560 lencinhos de mão, corpetes, impressionantes vestidos dos mais luxosos materiais, luvas, cosméticos e peças de joalharia. Parte das peças vinham compor os enxovais das princesas Maria Isabel e Maria Francisca de Assis – que iriam casar com dois os seus tios –, indica a directora do palácio. Para homem há também dois registos: 144 camisas e 228 pares de meias. 

Ao Palácio de Queluz, o documento chegou no final de Setembro do ano passado. Foi adquirido através da leiloeira Sotheby’s e do antiquário S. J. Phillips, por um valor não divulgado. A faustosa compra da rainha (de 1.103.709,13 reais) é detalhada em francês e, no final, resumida em espanhol pelas 71 páginas de um caderno sóbrio de couro marroquino vermelho, com 22 por 20,5 centímetros. “Não é das peças mais vistosas”, avisa Inês Ferro, “mas tem um “potencial enorme” de investigação. A directora do palácio nota ainda o excelente estado de conservação em que se encontra o documento com mais de 200 anos.

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Parte das peças vinham compor os enxovais das princesas Maria Isabel e Maria Francisca de Assis – que iriam casar com dois os seus tios Daniel Rocha

“Queremos sobretudo sistematizar e de alguma forma ilustrar esta listagem, num contexto alargado do que era a silhueta, os adereços, os hábitos, os gestos”, indica. Nos próximos meses o documento será alvo de uma investigação multidisciplinar, com o objectivo de fazer corresponder as referências às respectivas peças e retratos da época. Deverá culminar com uma publicação dos resultados na linha editorial Coleções em Foco, da Parques de Sintra.

Antes disso, porém, o público poderá vislumbrar a lista de compras da rainha. Ainda não existem datas ou planos concretos, mas Inês Ferro avança que o documento deverá ser exposto ainda este ano, à partida no toucador de Carlota Joaquina – que no Palácio Nacional de Queluz passou os últimos momentos de vida. Nascida em Espanha, a 1775, Carlota Joaquina de Bourbon – filha do rei espanhol Carlos IV – chegou com dez anos à corte portuguesa, para casar com D. João, que se tornou mais tarde príncipe herdeiro aquando da morte do irmão primogénito.

O documento permite identificar os gostos de Carlota Joaquina e determinar até que ponto estavam em linha com as correntes europeias da época. Nem todas as peças têm uma descrição muito extensiva, mas os vestidos, por exemplo, são detalhados de forma mais viva – há referência aos tipos de materiais, cortes e cores. 

“Era interessante conseguir fazer corresponder a objectos reais aquilo que vem elencado nesta exaustiva listagem de items de moda”, de forma a que “as pessoas possam ver as tipologias e perceberem o que eram os toucados da época, qual era a linha da indumentária”, refere Inês Ferro.

“Do ponto de vista da documentação [este manuscrito] é de um valor incalculável”, comenta ao PÚBLICO a investigadora Mafalda Barros, actualmente a desenvolver um doutoramento sobre o legado cultural da rainha Carlota Joaquina. “É de todo o interesse ter um conhecimento mais aprofundado das fontes primeiras da nossa história porque passamos muito tempo a ler fontes secundárias que muitas vezes estão contaminadas por visões ideológicas dos seus autores”, acrescenta a ex-vice-presidente Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (actual Direcção Geral do Património Cultural).

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Mafalda Anjos: “Do ponto de vista da documentação [este manuscrito] é de um valor incalculável” Daniel Rocha

As visões condenatórias e por vezes contraditórias de Carlota Joaquina são exemplo flagrante disso. “Tanto dizem que ela tem traços varonis, como depois de certo modo condenam esse gosto pela moda ou pelas jóias, quando isso são leituras feitas em épocas posteriores”, observa a investigadora. Não existe também falta de fontes que lhe apontem defeitos ao aspecto físico, desde a irregularidade das feições ao formato da cara.

Oliveira Lima, um importante historiador brasileiro nascido na segunda metade do século XIX, descreve Carlota Joaquina como “um dos maiores, senão o maior estorvo da vida de Dom João VI”, cujas ambições faziam a diplomacia da época “de tempo a tempo andar numa roda-viva”.

“Os traços varonis e grosseiros do seu rosto, o seu género de preocupações, o seu próprio impudor, denotam que em D. Carlota havia apenas de feminino o invólucro”, escreve no livro D. João VI no Brasil. “O traço convencionalmente feminino de Dona Carlota era o amor das jóias e vestidos, o fraco pelo luxo”, aponta ainda, referindo que esta “nunca se resignou a ser aquilo para que nascera – uma princesa consorte” e que “sentia em si sobeja virilidade para ser ela o rei”.

Certo é que a rainha tinha interesses vincados e exercia um poder político activo. Sendo a única Bourbon livre – numa altura em que a família real espanhola estava detida em Baiona – ambicionou tornar-se regente da América Espanhola. Por outro lado, era uma absolutista ferrenha, que mais tarde viria a apoiar o filho D. Miguel na luta entre liberais e absolutistas. Foi portanto “muito mal tratada pelos liberais. Sobre ela diz-se tudo e mais alguma coisa”, remata Inês Ferro.

Economia de 1816

As compras de Carlota Joaquina equivalem de grosso modo a um sétimo da despesa de estado do ano de 1816, de acordo com os cálculos pedidos pelo P2 ao professor da Universidade de Lisboa Jaime Reis.

Nos livros de contabilidade do erário régio consta que nesse ano o estado gastou cerca de 7,5 milhões de reais. O investigador – cuja principal área de estudo incide sobre a história económica de Portugal nos séculos XIX e XX – ressalva, no entanto, que na época o peso da despesa de estado sobre a economia global do país era bastante menor do que actualmente.

É possível traçar ainda a comparação com as finanças pessoais da população: em média, o salário diário de um pedreiro era de 600 reais, um litro de vinho custava 140 reais e um quilo de carne de vaca 210 reais.

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As compras de Carlota Joaquina equivalem de grosso modo a um sétimo da despesa de estado do ano de 1816 Pintura de Domingos Sequeira

O equilíbrio das despesas “não fazia parte do pensamento do antigo regime”, comenta a investigadora Mafalda Barros. “Naquela altura as pessoas tinham de ter um certo aparato na sua apresentação. Fazia parte da representação”, acrescenta.

Dos 1.103.709, 13 reais da encomenda de Carlota Joaquina, aproximadamente 168,6 mil destinavam-se a encargos como a comissão de 5% paga ao correspondente em Paris, seguros, transporte, taxas de alfândega e correspondência, entre outros.

O professor de história económica do Instituto Superior de Economia e Gestão Nuno Valério oferece uma outra análise: tendo por base o índice de preços das estatísticas históricas portuguesas e as diferentes moedas, aponta que esse valor hoje corresponda a cerca de 24.175 euros.

Humanizar o discurso

O estudo dos trajes e artes decorativas é essencial no trabalho de reconstituição da época, explica Inês Ferro. É assim que se consegue “ilustrar, dar corpo e humanizar um discurso narrativo” e evocar a vivência dos espaços, acrescenta. “Quando entramos num Palácio como o Palácio de Queluz isso é uma preocupação”. As visitas da manhã de crianças de escola apresentam um exemplo prático: algumas salas ao lado, as turmas são guiadas por actores a representar figuras históricas da época.

Umas das conclusões que saltam à vista, numa leitura inicial do documento, é a influência que a moda francesa tinha, aponta Inês Ferro. A directora do palácio aponta ainda para têxteis de valor elevado, como os lamés (tecido com fios de ouro ou prata), rendas e bordados. “Sempre foram muito valorizados, às vezes quase mais do que as jóias”, refere.

As peças aparecem catalogados ora por tipologia (lingerie e luvas), ora por material utilizado (renda e seda). Algumas saltam à vista mais do que outras. É o caso do vestido de 16 mil reais de renda inglesa escolhido por Carlota Joaquina. A acompanhar a peça vinha um par de mangas compridas e outra de mangas curtas. Não era algo pouco comum, sendo que os próprios corpetes, por vezes vinham também com duas opções: mais rico ou mais decotado.

Em todo o manuscrito não há menção de fornecedores ou casas comercias, mas alguns dos termos descritos fazem lembrar termos de marketing contemporâneos. Ora, se as meias super finas ("superfins") custavam 65 reais o par, já as extra finas ("extrafins") ficavam por 80 reais.

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Umas das conclusões que saltam à vista, numa leitura inicial do documento, é a influência que a moda francesa tinha, aponta Inês Ferro Daniel Rocha

A encomenda englobava ainda uma série de outras compras das mais diversas áreas, inclusive cadernos de música com partituras em branco, produtos de cosmética e uma “nova invenção para escrever em simultâneo um original e a sua cópia com uma só mão”. Foi realizada nas vésperas da partida das infantas D. Maria Isabel e Maria Francisca de Assis para a corte espanhola. “Na iminência de ter de reunir um determinado número de objectos que valorizassem a imagem das infantas que iam ter cargos importantes, a rainha dirige-se a Paris para fazer esta compra”, explica Inês Ferro.

A própria Carlota Joaquina “durante algum tempo acalentou o desejo de vir à Europa” acompanhar as filhas, acrescenta Mafalda Barros. Acostumada à vivência na corte, esta nunca se conformou com a falta de confortos e aparato no Rio de Janeiro, indica a investigadora, reforçando que a rainha “não gostava nada de viver no Brasil”. Só regressou a Portugal, acompanhada por D. João VI, em 1820.

"Em várias cartas escritas do bibliotecário Luis dos Santos Marrocos ao pai, é possível encontrar relatos de que rainha estava a preparar a vinda à Europa", por volta do ano 1815, indica a mesma investigadora. Contudo essa ambição era conflituante com os interesses ingleses e acabou por retrair o seu apoio. 

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Carlota Joaquina numa gravura da época

O inventário que agora ocupa o espólio do Palácio Nacional de Queluz fazia parte de uma colecção privada inglesa. Foi publicado pela primeira vez no catálogo da exposição “The S.J. Phillips Collection of Jewels of Portugal”, organizado pela Sotheby’s, na Casa-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa, a Maio do ano passado.

Em termos de investigação, o documento dá pano para mangas. Uma das incógnitas, pelo menos, já foi resolvida. O signatário da grande factura – que estava descrito no catálogo da Sotheby’s como baronesa de Ardisson – é, de acordo com documentos originais revelados pela investigadora Mafalda Barros, João Baptista Ardisson, um súbdito espanhol enviado para a Europa para negociar o casamento das infantas. No final do documento dá o seu aval, assinando “salvo error à omission”.

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