Toda a gente fuma

A segunda temporada de High Maintenance estreou neste sábado no TVSéries.

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"The Guy" a acordar para mais um dia a andar de bicicleta e a vender marijuana HBO

“Comédias passadas em Nova Iorque” é todo um género televisivo que dá para tudo – e nada, como era Seinfeld. Sexo e a Cidade era exactamente o que o título prometia – sexo na cidade. Táxi sobre táxis e taxistas, 30 Rock era mais “meta” e falava sobre os bastidores de uma comédia televisiva. Faltava uma comédia sobre um gajo barbudo que anda de bicicleta em Brooklyn. Nada mais “hipster”, certo? Talvez. Mas High Maintenance, cuja segunda temporada estreou na madrugada de sexta para sábado no TVSéries (às 4h da manhã), é ainda mais hipster que isso: é sobre um gajo barbudo que anda de bicicleta em Brooklyn e que vende erva ao domicílio.

Comédia sobre marijuana, já foi feito. Muito bem, como foi Erva, sobre uma mãe solteira traficante nas “little boxes” dos subúrbios, e muito mal, como está a ser Disjointed, comédia falhada da Netflix sobre venda de marijuana para uso medicinal, mas com inegável sentido de oportunidade, porque está é uma discussão que ocorre um pouco por todo o mundo, Portugal incluído. High Maintenance é um bocadinho diferente. Não é sobre charrados, nem sobre narcotráfico. E não tem propriamente um arco narrativo forte para além do homem sem nome – “The Guy” – que anda de bicicleta a vender erva porta a porta. É sobre pessoas, que por acaso também fumam.

High Maintenance começou por ser uma web series em 2012, produzida em modo crowdfunding para o serviço de partilha de vídeos Vimeo. “A melhor série que não se vê na televisão”, era assim que era promovida nesses tempos em que cada episódio custava mil dólares, antes de passar para as mãos do gigante do cabo e rei da televisão de prestígio, a HBO. Aumentou a visibilidade, aumentaram os orçamentos, aumentou também a visibilidade do elenco – já não eram só os amigos dos criadores –, mas, na essência, ficou na mesma, mini-retratos (vários por episódio) de nova-iorquinos, que, por uma razão ou por outra, têm o “The Guy” na lista de contactos. Entramos brevemente na casa deles e nas vidas deles, eles compram, fumam (ou não), e seguimos o gajo da barba a pedalar até ao cliente seguinte.

Quando dizemos que High Maintenance não tem um arco narrativo, não é bem verdade, porque a série transporta, em certa medida, o crescimento pessoal dos seus criadores, Ben Sinclair (que é o “The Guy) e Katja Blichfeld, ele então um actor com pouco trabalho (que só conseguia emprego a fazer de sem-abrigo), ela uma directora de casting com uma agenda de contactos de centenas de actores à espera de uma oportunidade. Eram um casal e foram um casal até ao dia das eleições norte-americanas em 2016. Separaram-se, ela assumiu-se como lésbica, mas continuaram a trabalhar juntos – em primeira instância, reconheceram, porque estavam contratualmente obrigados a fazê-lo. E o “The Guy”, na série, vive no mesmo prédio e no mesmo andar que a ex-mulher, que vive com a namorada.

“Isto obrigou-nos a confrontar muitas coisas e lidar com elas de uma forma madura. Se não tivéssemos esta série, sabe-se lá como é que isto teria corrido”, questiona Katja Blichfeld numa entrevista conjunta à Time Out com o ex-marido. “Talvez de forma mais tradicional”, respondeu Sinclair. “O que é a mesma coisa que dizer que teria corrido bem pior. Quem sabe? A verdade é que, de uma forma bizarra e interessante, preservou a nossa relação e isso é fixe”, acrescenta Blichfeld. Ambos trabalharam juntos 70 horas por semana e vivem perto um do outro no mesmo bairro em Nova Iorque, com as suas vidas pessoais resolvidas.

Há algo a que High Maintenance não escapa, que é a referência à eleição de Donald Trump. É assim que começa o primeiro episódio da segunda temporada. O “The Guy” está a dormir com a namorada, acorda, olha para o telemóvel e tem uma data de mensagens de clientes. Não há qualquer referência a Trump, mas deve ter sido exactamente assim que aconteceu a todos os gajos que vendem erva: na manhã seguinte, a acordar para um novo mundo, muita gente deve ter precisado de fumar um charro.

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