Sexo: dominação e emancipação

É só quando o abuso está ausente que o sexo é um emocionante terreno de liberdade.

"A liberdade de importunar é indispensável à liberdade sexual", escreve-se num manifesto subscrito, entre outras, por Catherine Deneuve no Monde (09.01.2018) em reação ao que acham ser a "caça às bruxas" desencadeada pelo movimento que, à escala internacional, tem levado a uma impressionante denúncia coletiva de fenómenos de abuso e de exercício de poder (quase sempre) masculino por via da coerção sexual. É da natureza dos processos de mudança que, face à reivindicação de direitos ou à denúncia da exploração e da desigualdade, surjam sempre vozes conservadoras e reacionárias que se posicionam no lugar confortável de quem reivindica a liberdade, própria e dos outros (neste caso, dos "cavalheiros" que, por sê-lo, não devem ser confundidos com "machistas"), desvalorizando (ou negando legitimidade) a opressão sentida por quem a denuncia.

Claro que Deneuve reconhece que "a violação é um crime", mas, para ela, "tentar seduzir alguém, mesmo de forma persistente e canhestra, não o é." O que a preocupa é que "o que começou como a emancipação da palavra das mulheres tornou-se no seu oposto — estamos a intimidar as pessoas para que falem 'corretamente'" — e cá estamos nós na velha lengalenga do "politicamente correto", de que tudo isto não seria mais do que outra guerra de feministas, "ideólogos do género", que nos querem impor uma forma "totalitária" de ver o sexo e, afinal, todas as formas de sedução. Como os neoliberais face às denúncias de opressão social, primeiro minimiza-se a relevância do problema, depois denuncia-se a intenção totalitária de quem combate a opressão e, neste caso, das que se descrevem como vítimas de abuso.

Para Michèle Riot-Sarcey, uma historiadora francesa, Deneuve confundiu "os seus jogos de salão com a vida real" (Le Monde, 12.01.2018). O que Deneuve pretende dizer é que a experiência da sedução, afinal, está feita de homens que "importunam", e que quem disto se queixa deve-o fazer por alguma banal forma de inadequação, de frustração ou de vingança fora de tempo. Esta leitura arrogante da realidade adota uma leitura hierárquica e moral: há as que sabem e as que não sabem comportar-se no sexo e na sedução, um jogo reservado às "adequadas". Se as inadequadas se queixam, e o fazem anos depois (como se a denúncia do abuso sexual, ou de qualquer outra violência, só fosse admissível no calor do momento), é porque pretendem colocar-se na postura da vítima que procura um estatuto de "privilégio", provavelmente económico — e eis a insinuação de que quem se diz vítima de abuso pode não ter feito mais do que prostituir voluntária e conscientemente o seu corpo, pelo que vítima e perpetrador estão quites. Com teses semelhantes a estas tenho trabalhado em muitas áreas da minha investigação: as que sustentam que quem continua a olhar para Auschwitz pretende apenas um "privilégio" para os judeus (e ciganos, e eslavos, e homossexuais...), as dos que estão fartos da "obsessão memorial" das vítimas da repressão em Espanha, na América Latina, Portugal, em alguns casos, décadas depois, em plena democracia, continuando a abrir processos contra os responsáveis de tortura, de massacres, de sequestros... Nesta conceção, a vítima não passa de um oportunista a quem se poderia, até, ter reconhecido alguma razão no passado, mas que nesse passado, justamente, deveria ter deixado o seu lamento. Que a vítima procure agora justiça torna-se, assim, num ato cansativo e ilegítimo de quem incumpre o dever (moral e social) do perdão, do esquecimento, sem o qual, dizem, a vida não pode prosseguir.

A tese da "pedra sobre o passado", que as Deneuves e todos os antifeministas que, tão autocondescentes, por aí pululam, não é senão a da imposição de que cada um de nós aceite as formas de dominação sobre as quais se têm construído as relações sociais. Na sociedade como no sexo, porque também no sexo e na sedução há relações de subjugação, usando-se os mesmos instrumentos que se usam nas demais formas de dominação: a coerção física, o dinheiro, o capital simbólico. A apropriação do corpo do outro, da sua capacidade de prover desejo ou trabalho. É só quando o abuso está ausente que o sexo é um emocionante terreno de liberdade. Como diz Michèle Riot-Sarcey, "a lógica política da liberdade das mulheres compromete todas as outras [liberdades] e, dessa forma, a organização das sociedades, fundada na dominação do mais vulnerável. É aí que está o verdadeiro desafio".

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários