A Rosa Púrpura de Washington

Fenómenos como o de Trump têm sido explicados no quadro da reemergência do populismo. Todavia, as causas de tudo isto são ainda mais profundas e estão no puritanismo. Quer à direita, quer à esquerda, os EUA estão a ser varridos para um novo vento puritano, em alguns aspectos radical.

Num dos mais hilariantes filmes de Woody Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, o protagonista decide sair da tela e ir para o mundo real. Está apaixonado por uma espectadora que todas as noites vai vê-lo ao cinema. Mas também se encontra farto de ser apenas uma personagem ficcional. Diz uma passagem da película: “As pessoas reais querem as suas vidas ficção e as fictícias querem as suas vidas reais”. Tudo se passa em 1935, numa América em plena Grande Depressão, num bairro pobre de Nova Jersey, marcado pelo desemprego, pela bebida, pelo jogo e por famílias acabadas. No meio desta realidade desolada, Cecília vive com Tom Baxter uns dias perfeitos de paixão e aventura, chegando a certo momento a ir com ele para dentro da tela e passar a sua noite de sonho.

Em 2016, o protagonista de um programa da NBC resolve sair dos ecrãs da televisão para ir para o mundo real e concorrer à Casa Branca. No dia 20 de Janeiro do ano seguinte, Donald Trump deixa de ser uma personagem ficcional de uma grande empresa norte-americana que promete empregar o vencedor da competição entre vários executivos e toma posse como 45.º Presidente dos EUA. Mais do que o homem de negócios da vida real, ou do político nunca tinha sido, as pessoas escolheram a ficção que durante mais de uma década entrou pelas suas casas dentro.

Em 2020, a apresentadora de televisão Oprah Winfrey pode vir a ser a candidata democrata à presidência dos Estados Unidos. Pelo menos começa a contar com vários apoios e há sectores do partido que estão a levar a sério essa hipótese. Oprah teve durante mais de duas décadas o talk show mais visto da América, com alguns programas a atingirem vários milhões de espectadores, transformando-se numa das personalidades mais conhecidas do país.

Fenómenos como o de Trump têm sido explicados no quadro da reemergência do populismo na viragem da primeira para a segunda década do século XXI, sobretudo na sequência do colapso financeiro de 2007 e da “Grande Recessão”. É certo que eles contêm elementos populistas, mas o conceito de mediatismo esclarece melhor a ascensão de Donald Trump, e no extremo oposto de Oprah Winfrey. Ambos são personagens dos meios de comunicação social que oferecem uma ficção às pessoas reais sugerindo a estas últimas a promessa de sucesso e de uma vida boa, que não existe, criando uma realidade tão alternativa quanto imaginária.

Todavia, as causas de tudo isto são ainda mais profundas e estão no puritanismo. Quer à direita, quer à esquerda, os EUA estão a ser varridos para um novo vento puritano, em alguns aspectos radical.

O puritanismo é a força mais antiga e enraizada na América, datando do início da experiência colonial. Os colonos puritanos partiram para o Novo Mundo como uma opção consciente: fortemente marcados pela religiosidade e pela ideia de estarem a cumprir uma missão divina, pretendiam construir a terra prometida. Eram o povo escolhido por Deus que ia erigir a “cidade no alto da colina” para onde se virariam os olhos de todos e cuja história seria contada e passada palavra pelo mundo. E, na sua origem, o puritanismo era essencialmente bom, estando ligado à institucionalização e aperfeiçoamento de princípios como a igualdade, a liberdade, a soberania do povo e o governo limitado.

Todavia, ele conheceu em determinados períodos históricos uma versão má, não só pelo radicalismo colocado nos seus princípios como também por não admitir o “outro”, formas diferentes de ser e a liberdade de pensar. É o que acontece nos dias de hoje, havendo dois puritanismos radicais que se confrontam: um de direita e outro de esquerda.

O puritanismo de direita é o mais falado, está na base do fenómeno Trump e é alicerçado nos valores jacksonianos. Desde logo aqueles que fazem parte da agenda da direita evangélica mais conservadora como a religião, a família, o respeito e a honra, o trabalho duro e a não dependência do estado social, a oposição ao aborto e aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Depois um nacionalismo nativista, ou seja, que privilegia os brancos, os cristãos e os americanos de proveniência europeia, desconfia das minorias e dos imigrantes. Ainda a “liberdade negativa” que consiste na concepção de que o governo não deve ter intervenção na vida das pessoas, nem mesmo para proteger os mais discriminados. Finalmente, o comunitarismo, no sentido de privilegiar a comunidade mais próxima, o que é parecido ou mesmo igual, excluindo o diferente.

O puritanismo de esquerda é muitas vezes esquecido, está na base do fenómeno Oprah e não é menos agressivo do que o anterior, pois traduz-se nos tempos mais recentes no politicamente correcto de uma certa esquerda liberal norte-americana que censura socialmente certos valores, termos ou comportamentos e inferioriza o que não parece moderno e universal, logo rotulado de reaccionário. Da sua agenda fazem parte as chamadas causas fracturantes, perfeitamente legitimas, mas tornadas uma espécie de pensamento único imposto pelas elites políticas, sociais e culturais, que em nome da modernidade e da igualdade de direitos se exacerbam ao ponto de obrigar à autocensura: isto é, quem pensa diferente guarda-o para si, sob pena de ser acusado de discriminar e ofender. Também o universalismo, que incluiu os “outros”, os estrangeiros, os imigrantes, sendo os EUA um país de portas abertas a todos, mas fá-lo excluindo (ou, no mínimo, esquecendo) a América mais conservadora. Ainda uma nova língua, que substitui bom Natal por boas festas, não permite dizer americanos sem ser logo acompanhado de americanas, proíbe qualquer referência à cor da pele, não se podendo falar por exemplo em negros e sim em afro-americanos.

A conjugação do mediatismo e do puritanismo radical está a transformar profundamente a vida política nos Estados Unidos, a começar pelos partidos republicano e democrata e a acabar na Casa Branca. Donald Trump e Oprah Winfrey são o que se pode chamar numa linguagem que está na moda de fake politicians. Não têm ideias políticas substanciais, não existem nos partidos, não têm experiência nem uma história. Ora, ao contrário do que hoje é correcto dizer, isso não acrescenta nada de bom e a prazo mata a política. Eles são como a personagem do filme de Woody Allen: são ficções saídas da tela (ou do ecrã) para o mundo real. São uma espécie de Rosa Púrpura de Washington.

Professor na Nova FCSH e Investigador no IPRI     

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