A violência do desumano

Vamos vivendo em cápsulas, menos expostos às intempéries de seres de carne e osso, o que pode contribuir para disfunções sociais e mesmo para uma menor saúde mental.

The end of the f***ing world é uma série televisiva britânica de 2017, baseada na banda desenhada de Charles S. Forsman e que, logo no primeiro episódio, retrata a frustração de uma jovem que, sentada em frente a uma colega de escola na respectiva cantina, literalmente se “passa” ao receber uma mensagem de texto sua. Atira-lhe: “O que é isto? Não podes falar comigo? Estou mesmo aqui!”

Se uso esta cena é porque ela reflecte o modo como vários de nós, jovens ou nem tanto, (con)vivemos sem presença física ou, existindo esta, sem troca de palavras. Todos já assistimos ao deprimente espectáculo de casais em restaurantes em que não se falam e permanecem agarrados ao telemóvel, porventura em altas lucubrações enológicas. Estes aparelhos que se tornaram indispensáveis conduzem a uma falsa sensação de pertença a grupos, ainda para mais com a vantagem de se poder falar em tempo real com gente de todo o mundo. Mas tudo fica pelo caminho. Como professor, há pouco tempo, dizia-me um aluno: “Não tenho tempo para amizades reais, só virtuais.” O tempo não é quase o mesmo? “Claro que não! Pode ‘estar’ com várias pessoas ao mesmo tempo: uns no Whatsapp, outros no Instagram, Messenger do Face, em Facetime...”, como quem explica algo básico a alguém limitado.

Podemos “estar”. Neste verbo já não vai co-envolvido o olhar o outro, sentir-lhe o humor e a disposição, perceber olhares e esgares, rir, sorrir, comover e chorar em tempo real, à proximidade de centímetros, com a possibilidade de um abraço ou de um toque. A civilização do não-toque asséptico é esta. Não admira que cada vez haja mais médicos que, em consulta, se limitam a prescrever e escrever no computador, após breves perguntas, mas sem qualquer contacto físico. Medir tensões, palpação, medir a febre, analisar o orifício bucal, os ouvidos, são coisas do passado ou só em estado de emergência quando a queixa vem exactamente dali. Mesmo que a ciência nos ensine que o simples toque tem propriedades curativas ou, ao menos, calmantes e securizantes. Benditas medicinas tradicionais...

Tudo se vai fazendo com o menor contacto possível, o que obviamente também comporta vantagens. Cá, como em outras latitudes, quando se não deseja resolver um problema, marca-se uma reunião, despendem-se horas numa espécie de “masturbação mental” e tudo fica na mesma. Tudo menos o que resta da consciência que se aquieta por “algo” se ter feito. Nenhum de nós anseia, portanto — o que seria uma quixotesca quimera —, o fim das TIC, mas um seu uso correcto e que não contribua ainda mais para a desumanização. Os idosos abandonados nos centros das cidades, aumento de jovens com problemas psicológicos e psiquiátricos com ideação suicida, uma certa “melancolia” (“o mal negro” de Churchill) que se vai apoderando de quem, como nunca, tem mais recursos disponíveis, mas menos tempo e vontade de estar fisicamente com pessoas, construindo e reforçando amizades e relacionamentos. São cada vez mais comuns as aplicações de encontros, em género fast-food e nas quais gente muito bem colocada no mercado de trabalho, por não ter tempo, gets to the point. Nunca embarco em moralismos e nada tenho contra esta opção, mas compreende-se a sensação de vazio de alguns yuppies que, rejeitando a capacidade de sofrer sempre co-envolvida em verdadeiras relações humanas, recorrem a estes pragmáticos métodos. Saudades do velho anúncio do cavalheiro educado e asseado que procurava senhora com idênticas características para amizade honesta e sincera...

Os efeitos observáveis desta pouco admirável nova forma de vida são o alheamento e a incapacidade de sentir o outro como ser fora de nós. Pouco vemos esse outro ser — em carne e osso — e isso contribui para uma sua coisificação, para uma espécie de ideação de alguém que existe, que tem voz e cara, mas com quem se não está. E estar, o “bom” estar é tantas vezes permanecer em silêncio, aproveitando a companhia do outro, alheado deste, mas sabendo que existe sempre a possibilidade de um pensamento ser partilhado, de uma emoção ser comentada. Vamos, assim, vivendo em cápsulas, menos expostos às intempéries de seres de carne e osso, o que pode contribuir para disfunções sociais e mesmo para uma menor saúde mental. Defendemo-nos com correio electrónico, sms ou quejandos para não ter de ouvir a voz, para não termos de nos confrontar com coisas desagradáveis de dizer, mesmo que seja por via do aparelho que o próprio Bell nunca imaginaria que seria o actual “passaporte para estar vivo”. Nisso se traduz o telemóvel.

Há pouco li a obra de Michel de Montaigne sobre a educação das crianças. Tipicamente marcado pela pedagogia do período em que viveu, não pude deixar de sentir falta do humanismo, da ligação à filosofia e às artes por que propugna. Algures entre Montaigne e o solipsismo tecnológico-depressivo estará uma forma mais feliz de viver. E mesmo de viver todos os dias.

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