PSD: o desconforto dos ideólogos

Avizinham-se tempos diferentes e muito mais intensos no nosso debate político, com o que ganhará a qualidade da nossa democracia.

1. Para desgosto de grande parte da comunidade de colunistas da nova direita portuguesa, Rui Rio foi eleito no passado sábado presidente do PSD. Esses defensores de um purismo doutrinário de orientação liberal-conservadora consideram que com a vitória de Rio o PSD se autocondena a um estatuto de subalternidade programática e política em relação ao PS e desiste de contribuir para um esforço de clarificação do debate democrático em curso no nosso país. Prefeririam um PSD com uma carga ideológica mais vincada, devidamente afastado do centro político e indisponível para qualquer tipo de aproximação ao partido que representa a esquerda liberal e democrática portuguesa, o PS.

Nessa perspectiva, só um PSD em absoluta ruptura com a sua própria mitologia genésica — com a sua matriz fundadora de índole social-democrata — estaria em condições de enfrentar com sucesso a maioria de esquerda que assegura a governação do país. Essa análise assenta, a meu ver, em dois defeitos básicos: um excesso de ideologia e uma insuficiente compreensão de algumas singularidades históricas da democracia portuguesa.

O PSD nunca foi, para o bem e para o mal, um partido dotado de uma identidade doutrinária rígida. Francisco Sá Carneiro provinha do catolicismo social, valorizava devidamente a tradição liberal e aproximou-se da corrente social-democrata por razões associadas ao espírito da época. Desde a sua fundação, o partido transporta consigo uma ambiguidade ideológica que lhe proporciona uma ampla capacidade de adaptação aos desafios de cada momento. Já foi keynesiano e liberal, conservador e progressista, tecnocrático e humanista, descentralizador e centralista. Há um domínio em que permaneceu constante, se exceptuarmos uma ligeira hesitação na fase inicial do cavaquismo, que é o da intransigente defesa da opção europeia de Portugal. Fora isso, e fora a natural fidelidade aos princípios de uma organização política de natureza democrático-liberal e ao modelo económico assente no primado da economia de mercado, o PSD sempre deu provas de uma significativa plasticidade programática.

Esta característica é indissociável das condições em que se verificou o seu surgimento e da forma como se processou a sua participação ulterior na história da democracia portuguesa. O PSD nasceu num contexto pós-revolucionário, num ambiente social e político muito marcado pela supremacia das várias esquerdas e encetou a partir daí um percurso caracterizado pela sua importante contribuição para a construção e consolidação das instituições democráticas e para a estruturação do Estado-providência de que dispomos. O atraso do país no domínio do desenvolvimento económico e social preservou o PSD do risco de contaminação pelas ideias radicalmente neoliberais que definiram a agenda de uma parte significativa da direita europeia nos anos 80 e 90.

Grande parte da base de apoio eleitoral do partido, ainda que cultural e politicamente de direita, apoiava e em muitos casos até reclamava a extensão das funções sociais do Estado. Por isso, Hayek e Friedman não suscitaram especial interesse na direita portuguesa, restringindo-se a sua influência e popularidade a um núcleo muito reduzido, em grande parte proveniente do mundo académico. Pedro Passos Coelho, já no início da presente década, ensaiou alguma aproximação a um ideário mais liberal, mas em boa verdade não pôs em causa a permanência dos alicerces fundamentais do nosso Estado Social no desempenho das funções governativas. Convém não confundir uma política de austeridade imposta em grande parte pela presença da troika com uma deliberada vontade de refundação radical do sistema de organização económico-social.

A vitória de Rio significa que as bases do maior partido da oposição optaram por uma solução de liderança mais próxima do centro político e muito pouco preocupada com a clarificação da ambiguidade doutrinária que é conatural ao próprio partido. Ora, isto significa que o PSD, em lugar de se transformar no produto de laboratório elaborado por estes novos teóricos de uma certa direita portuguesa, permanecerá no essencial fiel à identidade que foi revelando ao longo da sua já longa trajectória de intervenção na vida política nacional. É por isso mesmo que não faz qualquer sentido, do meu ponto de vista, a tese de que com esta opção o partido se subalterniza e se autocondena ao insucesso eleitoral.

Ao mesmo tempo que afirmará a sua disponibilidade para entendimentos de fundo com o Partido Socialista, a realizar muito provavelmente depois das próximas eleições legislativas, o novo líder do PSD não perderá decerto uma só ocasião para se demarcar da acção do Governo e para vergastar aquele que sem dúvida apresentará como seu principal defeito: a ausência de capacidade reformista. Avizinham-se por isso tempos diferentes e muito mais intensos no nosso debate político, com o que ganhará a qualidade da nossa democracia.

Esta alteração não deixará de ter efeitos no comportamento das demais forças partidárias, até porque Rui Rio é, na verdade, uma personalidade política especialmente ambígua. Grande parte do seu prestígio público assenta na opção deliberada por se colocar permanentemente num lugar de fronteira entre o respeito pelo institucionalismo e a produção de um discurso anti-sistémico. Esse posicionamento, que até aqui lhe trouxe vantagens, pode contudo revelar-se de uma extrema precariedade se os seus adversários o obrigarem a um esforço de definição programática concreta. Uma coisa é produzir uma retórica evasiva sobre as reconhecidas disfuncionalidades do sistema judicial, outra é apresentar soluções precisas para a correcção das mesmas. E isto aplica-se às mais diversas áreas da acção do Estado.

António Costa terá agora de defrontar um adversário que pessoalmente estima e de quem em muitos momentos não se sentirá estruturalmente afastado. Isso contribuirá para uma descrispação no relacionamento entre o centro-esquerda e o centro-direita, sem que daí resulte uma desvalorização do confronto político que é próprio das sociedades democráticas. Julgo que o país poderá ganhar com isso, já que o excesso de polarização política apenas beneficia as posições extremistas, as visões simplificadoras e os fundamentalismos ideológicos. Tudo coisas dispensáveis.

2. Uma palavra é devida a Pedro Santana Lopes. O seu gosto pelo combate político, a sua inteligência argumentativa, a sua corajosa disponibilidade para correr todos os riscos, fazem dele, sem sombra de dúvida, uma das personalidades mais marcantes da história política das últimas décadas. Enganam-se os que pensam que esta foi a sua última batalha.

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