Recado da PGR para Angola: “Respeito deve ser mútuo”

A PGR deixou uma nota para Angola: “O respeito deve ser mútuo.” E também abriu um tabu, sobre a sua recondução. Mas foi o pacto da Justiça que dominou os discursos do novo ano judicial.

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Joana Marques Vidal Miguel Manso

Se no arranque da cerimónia de abertura do ano judicial, na tarde desta quinta-feira, eram apontados três temas para marcarem os discursos, apenas um prevaleceu: o Pacto de Justiça. Marcelo Rebelo de Sousa e Ferro Rodrigues destacaram a necessidade de dar continuidade a algumas das medidas acordadas para o sector – numa cerimónia onde esteve ainda a Ministra da Justiça, o presidente do Supremo Tribunal e o bastonário da Ordem dos Advogados. Pelo contrário, a renovação do mandato da procuradora-geral da República não se lê nas entrelinhas. Apenas exigência de “respeito mútuo” foi a mensagem subliminar para Luanda do discurso de Joana Marques Vidal.

Angola: “Respeito que necessariamente deve ser mútuo”

Não foi em jeito de confronto, mas o recado de Joana Marques Vidal a Angola está dado. A escassos dias do início do julgamento de Manuel Vicente, sem nunca referir o país, a procuradora-geral da República notou esta quinta-feira - e perante o Presidente da República e primeiro-ministro -, que as relações judiciais entre países devem sempre assentar “no profundo respeito pelos valores constitucionais fundadores dos Estados, pelos respectivos sistemas de justiça e no cumprimento rigoroso dos acordos, convenções e instrumentos jurídicos de cooperação judiciária entre si assinados”. Mas, sob pressão para deixar que o julgamento seja levado para Luanda, em respeito pela soberania do país, deu um passo à frente: esse “respeito, necessariamente, deve ser mútuo.”

Se, no seu discurso, Marques Vidal nunca se referiu a Angola, o contexto fê-lo por si, numa altura em que o Ministério Público está no centro da crispação entre os dois países devido ao processo em que o ex-vice-presidente Manuel Vicente é acusado corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documentos.  

Um tabu quanto ao futuro

Joana Marques Vidal aproveitou a cerimónia para fazer um balanço dos seus cinco anos de mandato à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR). Sobre a renovação ou não do seu mandato, em Outubro, nem uma palavra, apesar dos principais visados se sentarem à mesma mesa: a procuradora, a ministra que sugeriu o seu mandato “longo e único” e o Presidente da República para quem o assunto “não existe”.

“É justo (…) reconhecer como positivos os resultados dos caminhos até agora percorridos”, afirmou Marques Vidal, que considerara em 2016 que o mandato inerente ao cargo era de seis anos.

A magistrada destacou o reforço de organização interna, a criação de estruturas especializadas para a investigação da corrupção, da criminalidade económico-financeira e da criminalidade complexa e a “clara aposta na respectiva formação e capacitação” dos seus profissionais. Fruto disto, na sua óptica, “assiste-se, hoje, a um mais eficaz exercício de acção penal, mesmo quando está em causa criminalidade de elevada complexidade”. 

Os pedidos da PGR

Depois de elencar elogios ao trabalho judicial, e até de comunicação, do Ministério Público, Joana Marques Vidal deixou um pedido “inadiável”: é preciso alterar o Estatuto do Ministério Público. Para quê? Para criar um estatuto que clarifique as “competências e funções das diversas estruturas hierárquicas”, que “promova o mérito e o princípio de concurso” para os lugares de direcção e de colocação em procuradorias e departamentos especializados e que promova “a constituição de equipas conjuntas”.

Para a magistrada, o estatuto deve consagrar ainda a autonomia financeira, como forma de reforçar as” condições de exercício efectivo da autonomia do Ministério Público”.

Com o reconhecimento do “muito que está por fazer”, Marques Vidal chamou a atenção para a Polícia Judiciária e demais instituições que coadjuvam o Ministério Público, dizendo ser “imprescindível reforçar e assegurar” os seus recursos humanos, materiais e periciais.

Marcelo capitaliza o Pacto

O Presidente da República e o presidente da Assembleia da República deixaram ainda um desafio aos partidos com assento parlamentar: aproveitem os contributos do pacto de Justiça para legislar. Marcelo Rebelo de Sousa avisou que é preciso ultrapassar discordâncias, admitindo que haja sempre quem considere “curto, escasso e frustrante o [resultado] obtido nestes acordos”. Mas, vincou, “o essencial é feito de pequenos passos”.

Numa altura em que os parceiros da Justiça chegaram a acordo sobre 89 medidas para o sector e em que o Governo deixou "explícita" a abertura para as pistas deixadas pelo pacto, Marcelo diz que é o momento para um “encontro ainda mais intenso entre os parceiros da Justiça, o Governo e a Assembleia da República”.

Depois de há 15 meses ter aberto o caminho para este pacto, é também agora o Presidente que dita as linhas para o Parlamento. É preciso “conhecer” a opinião dos partidos sobre este pacto e “apurar se, independentemente das perspectivas próprias, aceitam também desta feita receber e ouvir com apreço e espírito aberto o que resultou da ponderação difícil e longa” dos parceiros da Justiça.

A ministra não o rejeitou: o pacto, disse, insere-se num contexto de “abertura ao diálogo”, numa altura em que todos são “poucos para concretizar o desígnio comum de uma justiça acessível, célere, segura e compreensível. “Mas precisamos de consolidar este caminho; de fixar as fórmulas de não retorno”, instou Francisca Van Dunem, não se comprometendo com uma posição de Governo, a quem ainda não foi entregue o documento.

Menos custas: a única certeza

Das mais de 80 medidas presentes no pacto, apenas uma parece encontrar, para já, abertura junto do Governo. Trata-se redução das custas judiciais, que tornariam a justiça mais acessível. A questão depende, desde logo, da disponibilidade do Governo para aceitar a redução de receitas daí prevenientes. Sobre isso a Ministra da Justiça diz compreender o esforço necessário “para encontrar um equilíbrio digno entre a esperança e a concretização”, assumindo que vai olhar para o modelo de apoio judiciário e procurar novas formas de afectação das receitas.

Francisca Van Dunem começara por reconhecer que “ninguém pode ser privado do acesso à justiça e aos tribunais em razão da sua condição económica” e adiantara que o ministério reflecte os seus “modelos de organização e de financiamento” para melhorar o acesso à Justiça. Com uma ressalva: a limitação do orçamento do Ministério da Justiça que, anotou, “tem sido reforçado anualmente numa percentagem média de 4%”. Ou seja, não muito.

Estudo para medir a confiança

O repto foi lançado pelo presidente do Supremo e aplaudido por Marcelo. “Falta um estudo completo, que nunca foi feito, sobe a confiança dos cidadãos na sua justiça”, frisou Henriques Gaspar, para adiantar de seguida é precisamente isso que o Conselho Superior de Magistratura, a PGR e Ordem dos Advogados, com a colaboração de académicos, vão estudar: o nível de confiança dos portugueses na justiça. Porque, diz o presidente do Supremo, “não podemos permanecer na ignorância, submetidos a ideais feitas, sempre repetidas, que são apenas isso e verdadeiramente coisa nenhuma”.

Neto de Moura e o escrutínio da justiça

Também sem nunca referiu um nome em concreto, Henriques Gaspar deixou um recado aos juízes que possam exprimir “preconceitos ou pré-juízos”, referindo que “é dever dos magistrados prevenir o ruído e os equívocos produzidos por formas de linguagem acessórias e inúteis, que estão aquém ou vão além da autonomia da liberdade de expressão funcional”.

Recorde-se que em Outubro foi ouvido no Supremo, o juiz da Relação do Porto, Neto de Moura, que redigiu o acórdão que desculpabilizava a violência doméstica devido ao facto de a vítima ter cometido adultério.

Afirmando que “o juiz não pode estar - nem está - fechado na sua torre”, o presidente do Supremo frisa ainda a necessidade de “reconhecer que o escrutínio público da justiça é, por regra, muito frágil na cultura e na substância.” Insta, por isso, os cidadãos a participarem e não deixarem a Justiça “ao exclusivo de meia dúzia de comentadores”. Com Maria Lopes e Ana Henriques

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