Fronteiras e sociedades abertas num mundo globalizado

Hoje, as fronteiras políticas estão mapeadas e projectam-se na realidade geográfica, com maior ou menor precisão. No entanto, a ideia de limites geográficos precisos, efectivamente controlados por diferentes poderes soberanos, é relativamente nova em termos históricos.

1. A crise dos refugiados na Europa, o voto britânico favorável à saída da União Europeia e a "America first" de Donald Trump, incluindo as restrições migratórias para os EUA, evidenciaram, mais uma vez, as tensões entre a soberania do Estado, na qual assente a organização política e jurídica do mundo, e os Direitos Humanos de cariz universalista. A soberania estadual está estreitamente associada ao conceito de fronteira, ou seja, de uma separação entre diferentes comunidades políticas. Assim, a fronteira tem a função de delimitar o espaço físico e população sobre a qual o Estado soberano exerce uma autoridade tendencialmente exclusiva, implementa mecanismos de bem-estar e pode usar meios coercivos, incluindo para limitar ou impedir o acesso ao seu território. A delimitação de um território soberano resulta das próprias regras do Direito Internacional em vigor, fundamentalmente elaborado a pensar nas relações inter-estaduais. No mundo contemporâneo existem cerca de 200 Estados soberanos (193 são membros das Nações Unidas), com as correspondentes fronteiras políticas. Hoje, as fronteiras políticas estão mapeadas e projectam-se na realidade geográfica, com maior ou menor precisão. No entanto, a ideia de limites geográficos precisos, efectivamente controlados por diferentes poderes soberanos, é relativamente nova em termos históricos.

2. As grandes civilizações da Antiguidade conheciam e usavam fronteiras. No Império Romano existia a ideia de limes (limite em latim). Era uma forma de protecção do império face aos bárbaros. Todas as grandes civilizações tendiam a ver o estrangeiro como bárbaro. Encontramos similar concepção na China (o “Império do Meio”), onde a grande muralha foi uma forma de proteger o império chinês dos bárbaros asiáticos à sua volta. No caso do Império Romano, as fronteiras combinavam limites naturais, como os rios Reno ou Danúbio, com grandes muralhas fronteiriças nas partes que não podiam ser defendidas por limites / obstáculos naturais. Acontecia isso, por exemplo, com as tribos germânicas, na margem Norte do Mediterrâneo. Todavia, a ideia de uma fronteira precisa, com um limite desenhado num mapa geográfico e correspondência real no terreno, não existia no sentido moderno. A maior parte das fronteiras eram territórios de transição difusos — por vezes terras de ninguém —, onde coexistiam pacificamente e/ou conflituavam diferentes grupos humanos e poderes político-militares de facto.

3. Só com a moderna ideia de Estado soberano e com os avanços tecnológicos e científicos se pode alicerçar a ideia de fronteira na sua plenitude. No período medieval começou a usar-se o termo fronteira, no sentido de linha da frente, ou limitação, embora como algo ainda impreciso e difuso na delimitação territorial e de poder político. Os Tratados de Vestefália (1648), que, na Europa do século XVII puseram fim à Guerra dos Trinta Anos, abriram caminho à ideia de soberania como princípio basilar das relações entre Estados. Paralelamente, o progresso científico e da cartografia permitiram uma mais exacta percepção do território estadual e facilitaram o seu controlo. Se os Tratados de Vestefália abriram caminho à plena soberania do Estado no plano internacional (afastando as pretensões do Papa e do Imperador), a Revolução Francesa de 1789 solidificou o conceito no plano interno. O poder revolucionário francês procurou unificar e delimitar com precisão todo o seu território, suprimindo todos os enclaves de poderes estrangeiros, como por exemplo, os territórios papais no Sul de França, em Avinhão (Condado Venaissino), que complicavam o exercício da sua soberania. Afirmou, então, na sua plenitude, o princípio da soberania exclusiva sobre um território e população. A Revolução Francesa, trouxe, ainda, a moderna ideia do Estado-Nação, espalhando o princípio de que os limites do Estado devem corresponder ao território de um povo.

4. A ideia de uma fronteira política com limites territoriais claramente fixados, de facto e de jure, no interior da qual se afirma um poder exclusivo (soberano), sobre um território e população, alastrou pelo mundo sob influência europeia, sobretudo a partir do século XIX. Também fundamentalmente sob influência europeia / ocidental, surgiram, mais tarde, regras de delimitação de fronteiras que passaram a integrar o Direito Internacional. Actualmente, e em respeito pela legalidade internacional, as fronteiras existentes só podem ser modificadas por um acordo entre os Estados, ou eventualmente por arbitragem internacional, ou ainda com base numa decisão jurisdicional do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas. Estão sujeitas às regras e modalidades de solução pacífica de litígios entre Estados prevista no artigo 33.º da Carta das Nações Unidas. Todavia, é importante notar que na génese histórica das fronteiras não se encontram apenas divisões de grupos humanos fixados em diferentes territórios, ou limites geográficos naturais. Frequentemente, as fronteiras são mais o resultado de relações de força do passado, ou de interesses político-económicos.

5. Na primeira metade século XX, sobretudo após a I Guerra Mundial, a questão das nacionalidades e do direito à autodeterminação dos povos tornou-se um princípio político e jurídico internacional. Mas o princípio do Estado-Nação nem sempre é fácil de implementar na prática. Pelo contrário, frequentemente não é possível, devido a interesses nacionais antagónicos e relações de poder adversas, criar Estados que juntem um mesmo povo num determinado território onde este habita e sob o mesmo poder político soberano. O caso dos curdos, que se vêem, a si próprios como privados do seu próprio Estado, evidencia o problema no Médio Oriente moderno. Noutros casos, as fronteiras resultam fundamentalmente de interesses estranhos aos próprios povos. A arbitrariedade das fronteiras políticas em África, devido aos interesses dos colonizadores, é um exemplo clássico. Noutros casos ainda, é a própria formação de um Estado com uma determinada configuração territorial e localização, que deixa outro povo sem este (Israel / Palestina, Kosovo / Sérvia, etc.), devido a reivindicações sobrepostas. Acrescem ainda situações onde não existe um sentimento unificador de um povo ou nação entre a população que habita um determinado território, apenas identidades tribais, étnicas e religiosas pré-modernas (exemplo, o Afeganistão).

6. As fronteiras políticas continuam a fazer sentido como no passado, quando estávamos num processo de construção do Estado soberano? Hoje vivemos num mundo globalizado onde os movimentos de capitais, de mercadorias e de pessoas se intensificaram drasticamente. Emerge também a ideia de uma nova cidadania planetária. Estados democráticos, que se vêem, a si próprios, como sociedades abertas, devem manter um controlo efectivo nas suas fronteiras políticas, impedindo o acesso de estrangeiros que pacificamente queiram entrar no seu território, seja por razões humanitárias ou de procura de melhores condições de vida? Mas não há no Direito Internacional actual, a par do princípio da soberania estadual, um conjunto de Direitos Humanos de cariz universalista? “Nenhum ser humano é ilegal”, na poderosa frase de Elie Wiesel, Prémio Nobel da Paz em 1986, norte-americano de origem judaica que sobreviveu a Auschwitz e à tentativa de extermínio nazi. É, assim, legítimo falar num direito humano a emigrar, ou seja, de qualquer ser humano se poder deslocar livremente de um território soberano para outro? Mas será que as sociedades abertas, no sentido que Henri Bergson e Karl Popper deram ao termo, podem continuar a ser livres e democráticas se não se defenderem dos seus inimigos, internos e externos? Não serão as fronteiras políticas, e o seu controlo, uma necessidade de sobrevivência de sociedades abertas num mundo globalizado onde estas são uma minoria?

(continua)

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