Para May e Macron há o "Brexit" e há a segurança

Sob a égide da famosa Tapeçaria de Bayeux, Theresa May e Emmanuel Macron concentraram-se naquilo em que são indispensáveis: a segurança e defesa. A City veio à baila para estragar (um pouco) a Entente Cordial.

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Macron e May esta quinta-feira em Londres ANDY RAIN/EPA

Não fora o "Brexit" e não haveria nada de particularmente novo na 35.ª cimeira que esta quinta-feira reuniu em Sandhurst, na Real Academia Militar inglesa, a primeira-ministra britânica e o Presidente francês. A defesa foi sempre um assunto na agenda das duas potências europeias com maior capacidade militar, que partilham o estatuto de membros permanentes do Conselho de Segurança e de potências nucleares e que quase sempre tiveram visões distintas sobre a integração europeia e a relação transatlântica. Ouvindo Theresa May e Emmanuel Macron no final da cimeira, o divórcio entre as Ilhas e o Continente nunca existiu. A mensagem foi a mesma: continuar a cooperar em matéria de defesa, de combate ao terrorismo e de política externa, que correspondem ao interesse “vital” dos dois países.

As decisões que tomaram foram significativas em todas estas dimensões. Os dois países estiveram sempre no centro de qualquer iniciativa europeia em matéria de defesa. Foi assim na cimeira de St. Malo entre Jaques Chirac e Tony Blair, depois da “humilhação” na Bósnia e no Kosovo, em 1999, quando perceberam que não podiam dispensar os Estados Unidos. Ou, mais recentemente, no Tratado de Defesa assinado em 2010 por David Cameron e Nicolas Sarkozy, no qual os dois países estabelecem uma forte cooperação, quer em matéria de capacidades militares (incluindo forças conjuntas), quer na indústria da defesa, da qual são dois dos maiores produtores mundiais. Macron chamou-lhe uma cooperação “única”. May lembrou a venda de 38 Airbus 380 aos Emiratos, para referir até que ponto a inovação científica e tecnológica é fundamental para a prosperidade dos dois países.

Macron foi um dos principais inspiradores da nova PESCO (cooperação estruturada permanente para a segurança e defesa). O discurso oficial de Bruxelas é que as relações militares continuam a fazer-se por via da NATO. O Presidente francês considera que é preciso ir mais longe e estabelecer uma relação directa entre o Reino Unido e a União Europeia, tendo como centro a cooperação franco-britânica.

Do lado de Theresa May, a utilidade desta cooperação é óbvia: mostrar aos europeus que o seu país ainda é importante para eles. Com as perturbações na “special relationship” com os EUA, graças a Donald Trump, torna-se ainda mais relevante. A mensagem é simples, escreveu o Le Monde: “Durante os trabalhos do 'Brexit', a Entente Cordial franco-britânica continua”.

O investigador francês de Sciences Po, Dominique Moisi, resumiu esta longa relação para a BBC: as duas velhas nações “são aliadas e são rivais”, mas “o contexto internacional obriga-as a aproximarem-se para resistir ao terrorismo e responder ao vazio deixado pelos EUA”.

Esta quinta-feira, a par da cimeira, houve uma reunião entre os chefes de todas as agências de informações e segurança britânicas e francesas, cinco de cada lado, o que também é significativo. Os serviços secretos britânicos funcionam no quadro dos “Cinco Olhos” (os países anglófonos, dos EUA à Nova Zelândia, passando pela Austrália e pelo Canadá). Os ataques terroristas aproximaram os serviços secretos dos dois lados do Canal e Paris quer manter esta cooperação o mais estreita possível. “As portas estão sempre abertas entre o MI5 e a DGSI francesa”, diz um diplomata britânico citado pelo The Guardian. “Há o 'Brexit' e há a segurança”. A única diferença, como notaram vários observadores, é que Macron parte de uma posição de (maior) força e Londres sofre as consequências do isolamento.

O Presidente francês avisou antes da cimeira que o "Brexit" não estava na agenda. May gostaria de uma abordagem mais ampla. As negociações entre Londres e Bruxelas entraram numa nova fase, centrada nas relações económicas e comerciais, em que os interesses divergentes dos países europeus vão pesar mais. A diplomacia britânica não deixará de utilizar as relações bilaterais para enfraquecer a frente europeia.

Escreve o Politico que o governo britânico assinou um tratado militar com a Polónia em Dezembro passado, visto como “o primeiro sinal desta nova estratégia de bilateralismo”, mesmo que o caso da França seja especial. Nesta quinta-feira, a líder britânica lembrou a intensidade das trocas comerciais entre os dois países, alertando para o interesse mútuo em mantê-las. Macron quer atrair as indústrias e os serviços financeiros sediados em Londres, oferecendo-lhes o benefício do mercado europeu. Lembrou que o aceso da City aos mercados financeiros europeus será mais difícil. May insistiu que a City continuará a ser uma das mais importantes praças financeiras do mundo.

A Tapeçaria de Bayeux

A história da rivalidade entre normandos e saxões leva quase 1000 anos. Num gesto de boa vontade, que May agradeceu, o Presidente francês autorizou que a famosa Tapeçaria de Bayeux, uma longa “fita” bordada de 70 metros que conta a história da batalha de Hastings, em 1066, vencida pelos normandos e que os ingleses preferem lembrar como a última vez que o seu país foi invadido, seja emprestada a Londres em 2022, apesar das reclamações inglesas. Macron gosta de gestos simbólicos. “A tapeçaria é um convite à humildade”. Às vezes ganha-se, outras vezes perde-se.

Os dois líderes anunciaram várias decisões em matéria militar. O Reino Unido vai enviar três helicópteros da RAF para apoiar as forças francesas no Mali e reforçar um fundo liderado pela França para financiar o desenvolvimento do Sahel. Ambos vão continuar a cooperar em África, onde mantêm uma influência ainda significativa. A França prometeu deslocar para a Estónia 800 homens que se juntam à força britânica que lá permanece, para dissuadir qualquer “agressão” de Moscovo.  Os dois países querem expandir a “Força Expedicionária Conjunta Franco-Britânica”, prevista no Tratado de Defesa de 2010. A cooperação no âmbito da indústria de defesa traduziu-se igualmente numa série de projectos comuns. Londres gostaria de participar nos projectos industriais multilaterais que vão ser financiados (em parte) pela União, mas a questão não é pacífica.

Macron lembrou que em dossiers tão importantes como o acordo nuclear com o Irão os dois países mantêm a mesma posição, contrariando as investidas de Donald Trump e prometendo manter a vigilância sobre o seu cumprimento por parte de Teerão.

50 milhões por Calais?

Macron e May assinaram também um acordo sobre imigração, que pretende resolver o problema de Calais. Até agora, a França permitia aos britânicos verificar in loco o estatuto dos milhares de imigrantes ilegais e refugiados que se acumulavam no porto francês e cujo destino era o Reino Unido. O campo foi desmantelado em 2016, mas não pôs fim ao fluxo migratório.

May quer reforçar essa “fronteira” depois do "Brexit" para garantir que ela se mantém intransponível. Macron quer que a britânica pague 50 milhões de euros para financiar esse esforço. Em Londres, já começaram os protestos contra a ideia de mais um pagamento. Nesta quinta-feira, ninguém falou em números. A imigração é hoje um tema hipersensível, sobretudo do outro lado do Canal.

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