Portos querem seguir produtos desde a prateleira do supermercado

Janela Única Logística não será suficiente para tornar o sector do transporte mais competitivo. Operadores pedem para ser o Estado a usar o seu papel de agregador de dados para permitir que o sector possa transformar toda a informação que existe em conhecimento que faz a diferença na era digital

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Portos nacionais reclamam uma maior digitalização da sua actividade, sobretudo do lado da procura Daniel Rocha

O que há em comum entre o caos que se instalou no Natal, altura em que muitos dos que compraram prendas online se aperceberam que elas não iam chegar a tempo da troca de presentes, e a linha de navegação que está a ser operada por um navio auto-conduzido que está a unir três portos da Noruega que distam entre si pouco mais de 50 quilómetros? São ambos reflexo da revolução digital que está a transformar o mundo dos transportes e da logística e que, segundo os seus operadores, merece uma atenção urgente e aprofundada em Portugal. 

Numa altura em que o tema da digitalização está oficialmente instalado na Europa – sublinhe-se, por exemplo, o mais recente acordo de governo assinado entre dois partidos políticos na Alemanha que fixa metas para o digital e atribui-lhe meios financeiros – em Portugal o dossiê também está em cima da mesa, mas com preocupações ainda “incipientes”. “Só estamos preocupados em resolver o problema do lado da oferta, em melhorar as condições do terminal, do navio, do pórtico. Mas estamos a negligenciar os dados da procura e esses são, no meu ponto de vista, os mais importantes. São fundamentais para que cada um dos portos, e dos operadores, se prepare para melhorar a resposta aos clientes finais - porque são sempre eles a base da nossa actividade”, argumenta Jaime Vieira dos Santos, administrador do Yilport Leixões, um dos mais importantes terminais de contentores do país (só perdem em movimento de cargas para Sines) e que responde ao PÚBLICO na qualidade de presidente da Comunidade Portuária de Leixões.

Os argumentos de Vieira dos Santos fundamentam-se nas mudanças que, ciclicamente, trazem quadros novos para a cadeia logística: hoje as dinâmicas entre consumidores e produtos já não podem ser restringidas a mercados locais, nacionais, mundiais ou mesmo globais. “Hoje falamos de mercados multipolares e em smart ports [portos inteligentes], em que o porto tem de estar integrado na comunidade, no ecossistema. Se juntar a isto a circunstância de haver uma corrida grande aos produtos gourmet, ao que é anunciado como autêntico, estamos a deixar as grandes superfícies, estamos a voltar à loja. O comércio electrónico tem um problema que nós, da logística, temos de resolver: levar o produto à casa das pessoas”, explica o presidente da Comunidade Portuária de Leixões, acrescentando que o que os operadores precisam é de ter acesso à informação desde o supermercado, saber que o produto precisará de ser transportado assim que o consumidor o tira da prateleira ou faz um click na plataforma electrónica a dizer “encomendar”.

As Comunidades Portuárias dos Portos Portugueses do Continente (CPPCC) já manifestaram ao Governo, numa carta endereçada à ministra do mar, as suas preocupações em demonstrar que a cultura digital pode ser o maior recurso estratégico do país nos segmento dos transportes e da logística. A resposta do Governo está plasmada na estratégia para o Aumento da Competitividade Portuária, apresentada há já um ano, e onde aparecem os portos de Lisboa, Sines e Leixões como integrantes de um futuro Cluster dos Portos Digitais, na implementação de uma versão mais avançada da Janela Única Portuária (JUL) fazendo-a estender a todos os modos de transporte terrestre, desenvolvendo a ligação aos portos secos e às plataformas logísticas.

O projecto da Janela Única Logística pretende alargar a gestão de todos os fluxos de informação desmaterializada e simplificada – isto é, sem papéis e com segurança em toda a informação. O projecto da JUL está a ser coordenado pela Direcção Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), e está actualmente a avançar com pilotos em Sines, onde está a ser testada a integração com o modo ferroviário, e Leixões, com a integração com o modo rodoviário. O projecto deverá estar concluído em 2020, tem um investimento de 5,1 milhões de euros e permitir ganhos anuais até 12 milhões de euros. O PÚBLICO questionou o Ministério do Mar sobre outras iniciativas que esteja a estudar para a agenda da digitalização, mas ainda não obteve resposta.

Sem menorizar a importância destas medidas, Vieira dos Santos acrescenta, porém, que a JUL não é panaceia para todos os problemas, nem vai transformar os portos nacionais nos melhores portos do mundo. “Poderemos fazer a diferença quando estivermos todos interligados e haja um broker que pegue em toda a informação que existe, nos dados das várias plataformas, intervenientes e operadores e a transforme em conhecimento”, defende o presidente da Comunidade Portuária de Leixões, lembrando que “só se vendem produtos quando o consumidor tem confiança, e para ter confiança precisa de ter informação, e para ter informação é preciso trabalhar as bases de dados”. “Temos neste momento várias plataformas com informação relevantíssima, mas não estão interconectadas. Está cada um na sua casa sem querer ligar-se com o resto”, critica.

E quem poderia assumir esse papel de broker de dados? “Claramente, o Estado é quem tem perfil e competência para assegurar esse papel. E já tem os dados quase todos do lado dele”, defende Vieira dos Santos, referindo que as administrações portuárias poderão até ter aqui uma nova fonte de receita com a venda deste conhecimento. “Os portos antes recrutavam engenheiros. Agora precisam de analistas de dados. É disso que o Dubai, por exemplo, anda à procura”, acrescenta.

Voltando à necessidade dos operadores de transporte de ter antecipadamente dados sobre a procura, Vieira dos Santos refere ainda que “a grandeza sintética” que antes era dada pelas previsões de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) é hoje obsoleta. “O PIB português andou pelas ruas da amargura durante os três anos da crise e o Porto de Leixões esteve sempre a crescer”, recorda. “Temos de abandonar esta grandeza aglutinadora como espelho da procura final, e ir mais longe, até à prateleira do supermercado”, defende.

As questões da segurança e do segredo do negócio são “naturalmente relevantíssimas”, mas, defende, podem ser trabalhadas. “Depende do ponto onde se faz a segurança, e do detalhe dos dados que são fornecidos”, sintetiza.

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