Um disco valente na ressaca da troika

Nação Valente traz Sérgio Godinho à ribalta pela porta grande e a começar o ano da melhor forma.

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Nenhum dos discos que Sérgio gravou neste novo século soa tão “godinhiano” quanto o que vai chegar às lojas dia 26 com uma ideia muito forte no título: Nação Valente Arlindo Camacho

Nunca Sérgio Godinho tinha feito um disco assim. A capa é um close up sobre o seu rosto, nem sorridente nem triste, mas duro. E dos dez temas, embora assine quase todas as letras (a excepção é um original de Márcia, em versão própria), só em dois assina também as músicas, sendo as restantes sete de várias autorias: David Fonseca, Hélder Gonçalves, José Mário Branco, Nuno Rafael, Filipe Raposo e Pedro da Silva Martins. No entanto, nenhum dos discos que Sérgio gravou neste novo século soa tão “godinhiano” quanto o que vai chegar às lojas no dia 26 com uma ideia muito forte no título: Nação Valente.

O rosto é a mensagem? “É uma fotografia até um bocado dura”, diz Sérgio ao Ípsilon, falando da foto da capa, sem quaisquer letras ou sinais, só um rosto que nos interpela (a foto é de Arlindo Camacho). “No Ligação Directa [disco de 2006] aparecia a minha cara, mas mais distante e tinha aquele grão de ter sido tirada a contraluz [a foto era de Daniel Blaufuks e o design de Jorge Colombo, também sem letras; só um autocolante revelava o título do disco e o nome do músico]. Esta faz uma aproximação à pessoa, com o irónico de este ser um disco de muitas vertentes e parcerias musicais. Quis ter músicas de outros e de certo modo fazê-las minhas.” Resultou. A sensação imediata é de reconhecimento e homogeneidade, como se estas canções já nos fossem familiares e, ao mesmo tempo, surpreendendo pela novidade. Para isso contribuiu muito o trabalho de Nuno Rafael, que assegurou a produção e direcção musical. “Quis que ele tomasse as rédeas desde disco e ele tomou, de uma maneira muito empenhada e visceral”, diz Sérgio, com satisfação.

O método de composição não andou longe do que é habitual em Sérgio: primeiro pediu as músicas e sobre elas escreveu as letras. Com uma excepção: Filipe Raposo escreveu música para uma letra de Sérgio que já existia, Noite e dia, e esse foi o único caso “ao contrário”. “Era uma letra que eu tinha feito com outro fim e é bastante dura, com um teor pessoal e vivencial muito pesado. Há muita gente que viveu, ou vive, esse drama, de estar sobrecarregado de trabalho e já não se encontrar a si próprio. É um homem que tem dois turnos, daí o título da canção, e está já para lá do seu grau perfeito de consciência.”

As duas canções onde Sérgio assina letra e música têm, curiosamente, a ver com a ideia de jogo. A primeira é Baralho de cartas, em torno de um jogo amoroso, erótico, sensual (“Quando o teu corpo oscila no meu/ Quando é já carne o que era só céu”; ou o evitar de erros fatais: “Quando me engano regresso ao início/ Estaco na berma do precipício”). A segunda é Noites de Macau, e foi escrita para o filme Hotel Império, de Ivo Ferreira (o realizador de Cartas de Guerra), cuja estreia se prevê também para este ano. “É talvez a metáfora mais óbvia, a do jogo, que é ali omnipresente, do amor e dos amores perdidos.”

O tema que abre o disco, Grão da mesma mó, mistura spoken word e ritmos cadenciados numa vertigem que agarra o ouvinte à primeira. David Fonseca, autor da música, está também nos coros e ao piano. Sérgio: “São reflexões existenciais sobre a necessidade de estar bem consigo mesmo e de fazer qualquer coisa profícua em sociedade. ‘Vê lá o que fazes, há/ tanto a fazer/ Fazes que fazes/ Ou pões sementes a crescer?’” Mas também é uma alusão ao medo, que Sérgio já trata em canções desde o início: “O medo é uma coisa transversal. O medo de não ser capaz de mudar de vida, das consequências dos actos, os valores que se perdem e, quando nos apercebemos, já não os conseguimos agarrar.”

Mas há outros medos. Como o de que o amor falte, ou não resulte, ou acabe. Disso se fala em Artesanato, Tipo contrafacção ou Até já, até já, com músicas de, respectivamente, Hélder Gonçalves, Nuno Rafael e Pedro da Silva Martins (dos Deolinda). “O amor é um desafio quotidiano”, diz Sérgio. “Não nos podemos restringir à ideia de que está sempre tudo bem para todo o sempre. É uma coisa que tem de ser feita com o nosso labor, e daí a ideia de artesanato.” Mas há os amores acabados de Tipo contrafacção (num quotidiano onde as coisas são cada vez mais “tipo” ou contrafeitas; mesmo a escrita, com um acordo ortográfico que Sérgio Godinho faz questão de continuar a não seguir) e Até já, até já (“O ingrediente secreto secou, secava”), ambos sem remédio, a primeira canção encenada numa atmosfera de cabaré e a segunda numa clara atmosfera pop com riffs a lembrar os Stones. De amores fala também Delicado, de Márcia (do disco Casulo, de 2013) que Sérgio insistiu em gravar: “Tem muito talento. Ela é uma clássica, no bom sentido.”

E há José Mário Branco em Mariana Pais, 21 anos. “É um prazer voltar ao Zé Mário. Há muito tempo que não tinha uma personagem com nome. Quis falar de uma rapariga com pouca maturidade mas muita curiosidade em relação à vida e que não vive sempre com aquela profundidade mórbida ou demasiado séria. Ir até ao fundo, querer ter mundo. Foi uma coisa que eu tive desde novo, e aí há pontos de contacto com a minha experiência.”

Nação Valente, que dá título ao disco (com música de Hélder Gonçalves, dos Clã) é, diz Sérgio, “a canção aqui talvez mais sociopolítica. É uma referência ao período pós-troika mas é uma canção positiva. Diz: ‘não quero pôr-te numa gaiola/ de mão estendida por esmola’, mas diz também, e isso é muito importante: ‘Esquece e lembra o que ontem houve’. Ou seja, vamos para a frente mas lembra-te disso, lembra-te do que passaste. Mas é uma canção de confiança, em Portugal.” Que no refrão diz “Fronteiras antigas/ Fronteiras abertas/ Quero um país de ideias libertas.” Sérgio: “Temos que estar abertos aos outros, sabendo que temos as nossas fronteiras antigas e sólidas, que são pontes, não são o muro do Trump.” 

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