A caminho da eleição “telemática” de Puigdemont

Nos próximos dias ou semanas, Barcelona arrisca-se a voltar a um clima de tensão. A reeleição irregular do ex-president pode provocar não só uma situação de bloqueio político, como um aumento da conflitualidade, na Catalunha e em Espanha.

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Todas as atenções vão estar hoje centradas no parlament catalão: vai haver “arrefecimento” político ou nova escalada da tensão com Madrid? YVES HERMAN/REUTERS

A coligação Juntos pela Catalunha (JxCat), de Carles Puigdemont, e a Esquerda Republicana da Catalunha, de Oriol Junqueras, anunciaram ontem à noite um acordo para a reeleição de Puigdemont para a presidência da Generalitat (governo catalão). Roger Torrent, dirigente da ERC, será candidato à presidência do parlament de Barcelona. O comunicado não especifica como será reeleito o ex-president, se por “via telemática” ou através da delegação da presença noutro deputado.

A sessão inaugural do parlament saído das eleições de 21 de Dezembro, que hoje terá lugar, será seguramente marcada por elevada tensão. Os próximos dias indicarão se o país vai entrar num ciclo de “arrefecimento” político ou experimentar uma nova escalada de conflitualidade — entre Barcelona e Madrid e também dentro da Catalunha.

O regulamento parlamentar exige a presença do candidato na câmara durante a sessão de investidura, para apresentar o programa e responder num debate de dois dias. O parecer dos juristas do parlament rejeitou ontem (por unanimidade) a legalidade de uma eleição não presencial. O parecer não é vinculativo e a decisão final cabe à mesa e ao presidente do parlament. Será o primeiro tema para uma chuva de impugnações.

A sessão de hoje será assim o pró- logo da batalha sobre Puigdemont. O Cidadãos, o maior partido catalão, e o Partido Socialista dos Catalães (PSC) anunciaram que recorrerão preventivamente para o Tribunal Constitucional no caso de a mesa do parlament autorizar a eleição “telemática” do president da Generalitat. Estes recursos, prévios à votação, poderiam levar ao bloqueio da sessão de investidura, agendada para o dia 31.

A questão dos números

A confusão política tem sido extrema e começa nos números. A bancada independentista, composta pelo JxCat, que inclui o Partido Democrático Europeu da Catalunha (PDeCAT), pela ERC e pela Candidatura de Unidade Popular (CUP) elegeu 70 deputados, dois acima da maioria absoluta — 68. O conjunto da oposição soma 65 mandatos, o mesmo número dos soberanistas que hoje estarão no hemiciclo. A eleição de Torrent não levantará problemas porque o grupo parlamentar do Catalunha em Comum (CatComú), associado ao Podemos e à presidente de Barcelona, Ada Colau, deverá abster-se. Mais complicada será a eleição de Puigdemont.

Os três deputados detidos, entre eles, Oriol Junqueras, líder da ERC, deverão ser autorizados a votar, com o acordo do Supremo Tribunal. Os “quatro de Bruxelas” não preenchem os requisitos mas poderiam resignar e ser substituídos (excluindo naturalmente Puigdemont) para restabelecer a maioria soberanista. Mas recusam esta opção. O seu direito ao voto será decidido pela mesa.

É impossível resumir neste texto todas as complicações, variantes e negociações a que esta situação tem dado lugar. O único resumo possível é este: a decisão pode acabar no Tribunal Constitucional, na suspensão da investidura de Puigdemont e, inclusive, em novas eleições que ninguém deseja.

Divisão independentista

O ex-president quer ser eleito, legal ou ilegalmente, para poder apresentar-se como investido pelo parlament e depois destituído pelo Supremo Tribunal do Estado espanhol, mantendo a sua narrativa de “legítimo presidente da república catalã”. A prova de força em curso não tem oposto apenas independentistas e constitucionalistas ou unionistas. Dividiu também o campo soberanista. Nas últimas semanas, muitas figuras independentistas contestaram abertamente o roteiro da independência unilateral, entre eles, os presos Junqueras, Jordi Sánchez e Jordi Cuixart, Carme Forcadell, ex-presidente do parlament, os ex-consellers Joaquin Forn e Carles Mundó, ou Marta Pascal, secretária do PDeCAT.

Junqueras defendeu a tese de que a Catalunha precisa de um período de normalidade para anular a intervenção do Governo e recuperar a plena soberania do seu estatuto. O campo independentista não tem força para prosseguir a via unilateral, precisa de encontrar novos aliados e de atenuar a divisão social criada. A prioridade da ERC a curto prazo, escreve o analista Joan Tapia, “é baixar a conflitualidade da política catalã, pelo que a eleição de Puigdemont por via ‘telemática’ (ou por delegação) parece impossível e inconveniente”. O economista Andreu Mas-Collel, exconseller da Economia e fi gura de relevo do independentismo, propôs a criação de um “governo técnico” por quatro anos.

O peso do president

A todos Puigdemont responde que levantar obstáculos à sua candidatura será “uma fraude democrática”. Que argumentos tem? Em primeiro lugar, mantém uma elevada popularidade no campo independentista, inclusive entre os eleitores da ERC. Foi a mola da sua recuperação durante a campanha eleitoral, em que Junqueras partia com grande vantagem.

Funcionou o argumento da “legitimidade”. Para muitos eleitores, a reeleição de Puigdemont, “destituído pelo Artigo 155”, é uma poderosa resposta simbólica à intervenção governamental.

Em segundo lugar, está a tentar criar a partir de Bruxelas um núcleo duro de fiéis para “fagocitar” o PDeCAT, cuja fragilidade é patente e cujo descrédito foi aumentado pela sentença sobre o “caso Palau”. Puigdemont sabe que os votos são seus e não dos “convergentes”. Contará já, segundo a imprensa, com um bloco de 15 a 19 deputados. O acordo com a ERC, apesar de desconhecermos os seus contornos, surge como uma vitória de Puigdemont.

A situação actual é um produto da intervenção do Governo e do resultado das eleições de Dezembro. A Catalunha apareceu abertamente partida em dois campos políticos e sociais, em que nenhum se pode impor ao outro. O Artigo 155 desfez a veleidade da independência unilateral. Por outro lado, os independentistas mantiveram a legitimidade para governar — desde que se mantenham nos limites constitucionais.

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