Cannabis para fins medicinais, uma perspectiva científica

Embora não existam evidências que suportem a sua recomendação, há evidências que suportam a permissão.

A utilização médica da Cannabis sativa ou dos seus principais componentes ativos, denominados canabinóides, visa tratar ou aliviar determinados sintomas de algumas doenças. A planta Cannabis sativa é quimicamente rica, estando descritos mais de 500 compostos, dos quais cerca de 100 canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Embora as propriedades analgésicas, antieméticas e anticonvulsivantes da Cannabis sativa sejam conhecidas há muitos anos, o estigma das drogas de abuso atrasou a sua investigação. A caracterização dos recetores canabinóides e posterior descoberta de que o nosso organismo produz endocanabinóides representou um marco da investigação na área, permitindo compreender, ainda que parcialmente, os mecanismos subjacentes às propriedades terapêuticas da cannabis. Além disso, abriu as portas a um mundo novo na investigação farmacológica para situações tão díspares como obesidade, doenças neurológicas ou cancro. No entanto, a maioria destas potenciais utilizações baseia-se em ensaios pré-clínicos e, por isso, requerem cuidado na sua interpretação.

Atualmente, os ensaios clínicos suportam a utilização da cannabis, particularmente o THC e o CBD puros, para a dor crónica e para melhorar os sintomas relacionados com a rigidez muscular na esclerose múltipla. Existem também evidências, ainda que moderadas, de que estes canabinóides previnem as náuseas e os vómitos induzidos pela quimioterapia e estimulam o apetite em doentes com HIV. A eficácia e segurança demonstradas permitiram a comercialização, por alguns países, de medicamentos com THC e/ou CDB. Embora controversa, a utilização do CBD na epilepsia revelou-se, também, eficaz como tratamento adjuvante, particularmente na epilepsia infantil refratária aos tratamentos convencionais. Um extrato enriquecido em CBD (Epidiolex®) é alvo de um programa especial de prescrição enquanto aguarda a aprovação pela FDA. A prescrição de medicamentos contendo canabinóides não representa nada de novo, até porque o mercado de medicamentos já inclui outros com potencial efeito aditivo, nomeadamente a morfina e as benzodiazepinas. Acrescentar o THC ou o CBD à farmacopeia não seria por isso uma medida excecional. Aliás, diversos países, inclusive Portugal (Sativex®, aprovado em 2012), já permitem a prescrição de medicamentos contendo canabinóides.

Por outro lado, a utilização da planta Cannabis sativa, para fins medicinais, apresenta desafios próprios, não só porque os ensaios clínicos incidem, na sua maioria, sobre o efeito do THC e/ou CBD puros, o que dificulta a extrapolação para os efeitos de toda a planta, mas também pelas limitações relativas à via de administração e dosagem. A questão é, pois, perceber se estamos na posse de conhecimento científico suficiente que nos permita, com rigor, recomendar a utilização da planta cannabis para fins terapêuticos. De momento, não existem dados científicos suficientes que suportem esta recomendação. Os canabinóides devem, como qualquer outro medicamento, obedecer a critérios rigorosos de qualidade, segurança e eficácia para estarem disponíveis no mercado.

No entanto, alguns países, embora não recomendando a utilização terapêutica da planta cannabis, permitem-na, estabelecendo programas que minimizam algumas das suas limitações. Embora sejam necessários ensaios clínicos mais robustos, existem ensaios que suportam a utilização da planta cannabis e estão descritas vias de administração que reduzem os efeitos nefastos associados ao seu consumo na forma “fumada”. Aliado ao perfil de segurança da cannabis pode justificar-se o estabelecimento de um programa específico, tal como se verifica em outros países, onde doentes em situações clínicas pré-estabelecidas, sob adequado acompanhamento médico, podem aceder a extratos de cannabis, em condições controladas, de forma a garantir a qualidade e teor dos compostos canabinóides.

Assim, embora, do ponto de vista estritamente científico, não existam evidências que suportem a sua recomendação, existem evidências que suportam a permissão, ainda que controlada, do uso da cannabis para fins terapêuticos. A questão fundamental é, pois, saber se a riqueza farmacológica da planta Cannabis sativa justifica um programa excecional que permita o seu uso para fins terapêuticos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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