Uma semana e um ano astral para a justiça

Por mais voltas que se dê, a posição da ministra da Justiça é insustentável e é indesculpável. Marca o ano, mancha o exercício ministerial.

1. Três acontecimentos de diferente natureza, ocorridos na semana que findou e sem qualquer relação entre si, convergem no sentido de pôr a justiça – enquanto poder e função constitucional – no cerne da agenda e do debate público.

O primeiro e mais antigo veio a ser a apresentação ao Presidente da República, por apelo deste, de um pacto “inter-profissional” para a justiça (denominado “acordos para o sistema de justiça). Trata-se de um contributo consensualizado pelas estruturas profissionais dos diferentes intervenientes no sector da justiça, vertido em medidas de alcance muito diverso (e controverso), que terá agora de ser recebido pela opinião pública e pelo sistema político. Enquanto contributo para uma discussão pública alargada revela-se um instrumento muito útil, mas, como no próprio texto se reconhece, em nada dispensa a assunção das responsabilidades políticas por quem de direito. O ano político, no âmbito da justiça, não poderá deixar de ser influenciado pela marca de água deste documento. 

O segundo, surpreendente e claramente inusitado, consistiu na declaração da ministra da Justiça de que o mandato da Procuradora-Geral da República não era renovável. Cura-se de uma intervenção grave – para não dizer gravíssima –, feita a destempo, por quem tem obrigação de conhecer (e conhece efectivamente) as regras constitucionais que estatuem precisamente o contrário. Esta pronúncia antolha-se, sob qualquer ponto de vista, absolutamente incompreensível, seja no conteúdo, seja na oportunidade. Quando se esperava que a delicada questão da substituição do vértice do Ministério Público só ganhasse tomo e dimensão em meados do Verão, a ministra assombrou e enfeitiçou a questão e pô-la na agenda dos desenvolvimentos político-judiciais do ano inteiro.   

O terceiro diz respeito à eleição de Rui Rio como novo Presidente do PSD. Rui Rio fez do sistema de justiça um dos pontos distintivos do seu programa eleitoral interno, de resto, uma velha bandeira do seu pensamento. Muito orientado para a questão da eficácia do sistema como um todo (lentidão) e para o pólo da investigação criminal (garantias e legitimidade), acabará por ser um dos dossiês em que é natural esperar-se algum poder de iniciativa. Também, portanto, por via da eleição do novo líder do PSD, o tema da justiça irá necessariamente declinar-se no ano político de 2018.

O alinhamento astral destes três acontecimentos da semana e a capacidade de projecção e irradiação de cada um deles são um forte indício de que o ano de 2018 será pautado pelo signo da política da justiça e das relações entre a justiça e a política.

 

2. A conclusão do dito acordo “inter-profissional” e a agenda política do novo líder da oposição são obviamente desenvolvimentos salutares, na medida em que, concorde-se ou não com as linhas substantivas dos mesmos, facultam uma oportunidade para discussão, estudo, reflexão e, até, se não faltar à política a celeridade que mingua à justiça, para decisão e execução. Já a intervenção da ministra da Justiça é profundamente reprovável e seriamente perniciosa, introduzindo um factor de desconfiança, que pode inquinar não apenas o processo de designação do Procurador-Geral como também o previsível debate sobre esta agenda mais geral da justiça.

Por mais voltas que se dê, a posição da ministra da Justiça é insustentável e é indesculpável. A leitura dos preceitos pertinentes da Constituição não deixa margem a qualquer dúvida: o mandato do Procurador-Geral da República é renovável. Basta ler. Convém, todavia, desarmar outras linhas retóricas por aí ensaiadas para que quede cristalina a impropriedade da intervenção ministerial.  

 

3. O argumento, quase ontológico, de que o mandato de 6 anos é um mandato longo por essência não renovável (ou desejavelmente não renovável) não colhe. O mandato tem 6 anos, propositadamente para não coincidir com o mandato dos dois órgãos que intervêm na respectiva cooptação (Governo, 4 anos; Presidente da República, 5 anos). Só por isso e nada mais. Na tradição constitucional portuguesa, ao contrário do que sustenta a Ministra e alguns dos seus sequazes, um mandato de 6 anos não é havido como longo. Com efeito, quando os juízes do Tribunal Constitucional tinham um mandato de 6 anos, este era renovável; só quando passou a 9 anos se volveu em não reconduzível. E, em todo o caso, sempre convém não confundir a posição de um juiz com a posição de um procurador. E, muito menos, a posição de um juiz do Tribunal Constitucional (ou de um tribunal supremo) com a do Procurador-Geral da República que, além do mais, não tem de ser um magistrado do Ministério Público (caso de Pinto Monteiro) nem sequer tem de ser um magistrado de carreira. Numa palavra, não renovabilidade do mandato de 6 anos não resulta da natureza das coisas.

 

4. Não faz também vencimento – nem deve fazer – o argumento corporativo. Na verdade, com plena consciência de que a Constituição não adoptou o modelo do mandato único, uma forte corrente de magistrados do Ministério Público, também dominante no respectivo sindicato, defende a bondade da solução do mandato único. Por outras palavras, reconhece que a lei não impõe essa solução, mas considera-a a mais adequada e conveniente à chefia daquela magistratura. É porventura nesta corrente, com a sua longa e prestigiada carreira de magistrada do Ministério Público, que se filia a ministra da Justiça. Mas justamente por isso estava e tinha de estar perfeitamente ciente de que a Lei Fundamental permite a recondução. Ciência essa que, aliás, se manifesta flagrantemente no discurso tentativo da Ministra com a busca do contexto histórico e da alegada ideia “subjacente”.

 

5. Nada desculpa, portanto, a declaração da ministra, que outro intuito não teve senão o de desencantar um pretexto jurídico para o anúncio precoce e temporão de um juízo político. Marca o ano, mancha o exercício ministerial.   

 

SIM. Rui Rio. Marcou a agenda de médio prazo ao focar o novo ciclo e fôlego político na construção de uma alternativa clara e forte à frente de esquerda e ao seu imediatismo populista. 

 

NÃO. António Costa. Ao vincular Portugal, pela calada, à criação de listas transnacionais nas eleições europeias prejudica o interesse nacional e, pior, despreza a competência eleitoral da Assembleia.

 

 

 

 

 

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