Reviver o passado em Jamestown

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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José Filipe de la Fuente
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Santa Helena e Tristão da Cunha podem ser, em termos administrativos, uma unidade, mas pouco mais têm em comum do que a governadora. Assim que saímos dos 30º de latitude, a temperatura subiu sensivelmente, o mar tornou-se tranquilo e as aves marinhas quase desapareceram.

Depois de Tristão, o desembarque em Santa Helena parece uma operação sofisticada, cómoda e rápida. O porto de Jamestown, a capital da ilha, não tem profundidade para navios de maior porte e, tal como em Edimburgo dos Sete Mares, o RMS tem de ancorar ao largo. Mas aqui as águas são calmas, os passageiros descem tranquilamente por uma rampa metálica para pequenas lanchas de 20 lugares e, em menos de um quarto de hora, todos estão em terra. Subidos os degraus do cais de pedra e passado o controlo de passaportes – assegurado por uma senhora sorridente que parece mais interessada em saber como correu a viagem do que em confirmar a nossa identidade, naquele que deve ser o mais simpático serviço de estrangeiros e fronteiras do mundo – não é preciso dar mais do que meia dúzia de passos para chegar ao centro de Jamestown.

Na marginal, vive-se um ambiente de festa, com saints, como são conhecidos os habitantes da ilha, a reencontrar familiares e amigos trazidos pelo barco e cães saudando efusivamente donos há muito ausentes. Na baía em frente, por entre pequenos barcos de pesca e alguns veleiros, avista-se o que resta da chaminé do SS Papanui, o navio de transporte de carvão que se incendiou e afundou à beira do cais, em 1911.

O acesso à cidade faz-se atravessando uma pequena ponte e transpondo um arco na muralha. À esquerda fica o edifício designado como Castelo, onde estão instalados os serviços do Governo de Santa Helena. Que esta é, ainda, a sede de um poder reminiscente do colonial é evidente pela viatura oficial da governadora, estacionada à porta, um Jaguar com um pequeno mastro para a bandeira de Sua Majestade e nada mais do que uma coroa real em metal prateado na chapa de matrícula.

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À direita, no local onde os marinheiros portugueses construíram a primeira capela, no início do século XVI, fica a igreja de St. James. O edifício actual, do final do século XVIII, substituiu a igreja original, construída cerca de 100 anos antes, e é a igreja anglicana mais antiga do hemisfério Sul. No interior, relativamente espartano, as paredes estão cobertas por placas em memória de passageiros que não sobreviveram à viagem entre a Índia e Inglaterra ou de empregados da Companhia Inglesa das Índias Orientais, que governou a ilha entre 1657 e 1834. Como o infeliz George Singer, “que encontrou a sua morte por se ter acidentalmente precipitado da ilha de Egg quando servia fielmente os seus patrões”.

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Quase tudo em Jamestown, onde vivem cerca de um terço dos 4500 habitantes da ilha, tem uma escala de brinquedo e parece preso numa cápsula do tempo. O melhor exemplo é a minúscula prisão vitoriana, com a inscrição “H. M. Prision” por cima de uma pequena porta de grades. Não se trata propriamente de uma instalação de alta segurança, o que se compreende, atendendo a que estamos numa ilha em que as pessoas não trancam as portas e o crime mais grave é geralmente a condução sob efeito do álcool. Curiosamente, neste momento a prisão tem um ocupante de longa duração: um saint que tentou (e, dizem as más línguas, lamentavelmente falhou) estrangular a excêntrica proprietária do Consulate Hotel, o mais antigo e, até muito recentemente, único hotel da ilha. Isto soubemos no navio, onde viajava também um advogado inglês que irá participar no julgamento. Numa ilha onde todos são familiares ou, pelo menos, amigos próximos, casos de maior gravidade exigem uma experiência e, sobretudo, um distanciamento que não é possível à justiça local.

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Regressar a um local que conhecemos também tem o seu encanto; o que se perde em surpresa, ganha-se em à-vontade e, num sítio tão pequeno como este, em reconhecimento mútuo. À medida que subimos a Main Street, com os seus pequenos edifícios do século XVIII, somos cumprimentados pelos transeuntes. Os saints são pessoas especialmente afáveis, uma mistura muito particular resultante de séculos em que na ilha confluíram colonos ingleses, marinheiros da mais variada proveniência, mão-de-obra trazida da Malásia e da China e escravos africanos libertados. Todos se cumprimentam e, simpaticamente, estendem esse hábito aos visitantes.

Entramos numa loja que anuncia peixe fresco e somos imediatamente reconhecidos pela proprietária, que nos saúda efusivamente. Suspeitamos que somos os únicos turistas a comprar lombos de cavala e a senhora regista o nosso contacto para avisar da chegada de atum. Já estamos a imaginar um belo jantar de atum fresquíssimo de Santa Helena, acompanhado com as batatas que trouxemos de Tristão.

Comprar alimentos frescos é, em Santa Helena, um desporto de alta competição. O subsídio governamental ao transporte de carga reduz artificialmente o preço dos produtos importados da África do Sul e torna não competitiva a já diminuta produção local. O resultado é uma escassez crónica de legumes e fruta, apenas aliviada enquanto duram os stocks descarregados do RMS. E, mesmo nesses dias, é preciso perseverança e calma: hoje, há alface no Solomon; o Thorpe tem pepino; na Queen Mary Store – uma deliciosa reminiscência dos armazém gerais de outros tempos – foram avistadas maçãs! Em Jamestown, ninguém estranha se um desconhecido nos perguntar onde conseguimos encontrar as bananas que levamos no saco. Mas o cúmulo do luxo são os ovos, cuja importação está banida, devido à gripe das aves. “You have to have connections”, dizem-nos, com um ar conspirativo.

É apenas porque já aqui estivemos que não nos surpreendemos com a visão de um Rolls Royce parado em frente à magnífica varanda de ferro forjado do Consulate. Ao volante está Steve que, depois de uma vida de marinheiro, se estabeleceu em Santa Helena. A última vez que o encontrámos, em 2016, estava entretido a reparar o Rolls na sua quinta no interior da ilha, enquanto algumas galinhas saltavam alegremente em cima do capot. Steve é um dos que não gosta do aeroporto e das mudanças que trará à ilha, um tema que, suspeitamos, dominará muitas das conversas dos próximos dias. Mas, essa, é outra história.

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