Morreu José Nuno, o pintor da origem da matéria

José Nuno da Câmara Pereira foi um criador multifacetado e o mais importante dos artistas plásticos portugueses que residiam nos Açores.

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José Nuno da Câmara Pereira, por altura da sua exposição “José Nuno da Câmara Pereira - Um Sísifo Feliz”, em Abril de 2016 Rui Soares/ Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas
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José Nuno da Câmara Pereira, por altura da sua exposição “José Nuno da Câmara Pereira - Um Sísifo Feliz”, em Abril de 2016 Rui Soares/ Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas.
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José Nuno da Câmara Pereira, por altura da sua exposição “José Nuno da Câmara Pereira - Um Sísifo Feliz”, em Abril de 2016 Rui Soares/ Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas

Todos o conheciam e o tratavam por José Nuno, embora o nome com que assinava os seus trabalhos, José Nuno da Câmara Pereira, evocasse logo à partida a origem açoriana que era a sua e que tão bem transparecia na sua obra. O artista plástico José Nuno faleceu em Lisboa, no passado dia 14, como consequência de doença vascular cerebral de que sofria. Contava 80 anos e tinha tido em 2016, com curadoria de José Luís Porfírio, a grande antológica que a sua obra merecia há muito. Foi no Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas dos Açores, em São Miguel, e recebeu o título de Um Sísifo feliz.

E, de facto, este foi um também um feliz achado para qualificar a obra deste artista. Se Sísifo repetia incessantemente a mesma tarefa, a José Nuno animava-o a infinita pergunta sobre a natureza do mundo, da matéria, da água e do fogo, esses elementos antigos sempre presentes e activos no seu arquipélago natal. Quer fosse na pintura, a sua área de formação essencial, na instalação, no vídeo, na cerâmica ou até na escultura (fez, nomeadamente, uma peça de grande formato para a Pousada de Angra do Heroísmo, cidade onde vivia), soube sempre captar a efervescência de um mundo ainda e sempre em devir, devir esse que por vezes se fazia sentir também na sua obra: em 1987, por exemplo, desenvolvia uma técnica para a utilização de cristais líquidos na pintura que lhe permitiam, como então afirmava, “fazer aparecer e desaparecer a imagem conforme a variação da temperatura”. Qualquer associação com as mudanças provocadas na paisagem por causas vulcânicas não era, decerto, mera coincidência.

Nascido em 1937 na ilha de Santa Maria, José Nuno recordava como uma das experiências mais marcantes da sua vida a visita ao Faial, aos 20 anos, para visitar o vulcão dos Capelinhos ainda em erupção. Segue em 1958 para Lisboa, onde estuda Pintura nas Belas-Artes, começando também no início da década de 60 a leccionar na Escola Técnica de Alcobaça. Esta foi uma vertente importantíssima da sua actividade, tendo também dado aulas na António Arroio, no Arco e na FBAUL. Paralelamente, como muitos outros artistas da sua geração, realizou trabalhos como artista gráfico e publicitário.

Começou a expor em 1974, em plena época revolucionária, e a sua obra revelava desde logo uma atenção desperta também para a possibilidade de a obra de arte se tornar num instrumento de mudança do próprio ambiente artístico. Em 1979, uma exposição na Central Tejo foi descrita por Ana Hatherly como a reunião de objectos/esculturas em acrílico transparente que estavam quase todos cheios de líquidos coloridos “que começavam a arder, lançando pequenas chamas, ou a ferver, ou a deitar um fumo branco, qual nevoeiro de cena, ou a borbulhar surdamente como caldeiras vulcânicas”. A constante interrogação do pintor à matéria tomava assim forma pela primeira vez e não mais deixaria de aflorar em todas as exposições realizadas desde aí.

Neste constante questionamento a tecnologia era ainda motivo de fascínio. Afinal, a década de 70 marca em Portugal o fim do optimismo modernista, com a sua confiança quase cega na técnica e no progresso, na crista de uma mudança que, nos anos 80, vai levar os artistas de uma outra geração mais jovem a olhar para o passado e para as obras legadas pela história como fonte viva de inspiração.

E se José Nuno faz algumas das suas peças mais marcantes nestes anos de jovem democracia, a sua atenção vai levá-lo também para uma prática da pintura mais conforme à tradição bidimensional desta disciplina nos anos subsequentes. Assim, em 1986, por exemplo, participa na III Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, onde obtém o prémio de instalação com O Começo: o chão da terra, uma peça feita de peças, sementes e outos materiais aglutinados por poliéster, muito semelhante à que lhe vale, no mesmo ano, o 1.º Prémio Aica – Philae na SNBA. E, se esta obra efémera, que despareceu com o passar do tempo, trazia a matéria da pintura para o nível do chão, outras nos anos seguintes voltaram a colocá-la na parede, o seu lugar tradicional.

Em 1994 José Nuno da Câmara Pereira regressa aos Açores. Passa a animar como pedagogo a Oficina d’Angra e o Centro Residencial para Artistas, que visam abrir as potencialidades poéticas deste arquipélago aos criadores do mundo inteiro. Neste contexto, por exemplo, promoveu em 96 a realização de um Simpósio Internacional Multimédia que levou ao Faial 25 artistas de todo o mundo, entre os quais a também açoriana Ana Vieira, que era sua amiga e que com ele partilhava memórias de infância.

O corpo estará na terça-feira a partir das 17h na Igreja de Santa Isabel, havendo missa de corpo presente na quarta-feira, pelas 10h15, seguindo-se cremação às 12h no cemitério do Alto de São João.

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