Da Expo-98 à Marvila 2018

Em 2018 passam 20 anos sobre a realização da Expo-98 de Lisboa. Nessa época desejava-se que a iniciativa funcionasse como pilar de renovação e desenvolvimento de toda a zona oriental da cidade. Não aconteceu na altura, mas agora os sintomas de uma profunda recomposição da área são mais do que evidentes.

Em 2018 passam 20 anos sobre a realização da Expo-98 de Lisboa. Ao longo do ano certamente que muito se falará do evento em si e talvez ainda mais da operação urbanística que permitiu a regeneração daquela parcela da cidade. Nessa época ambicionava-se que a criação do Parque das Nações não gerasse uma espécie de ilha. Havia o desejo de que funcionasse como pilar de renovação e desenvolvimento de toda a zona oriental, através da produção de um efeito de contaminação positivo.

No mesmo ano, exactamente nos últimos dias da Expo’ 98, nasceu o Lux-Frágil, ao Cais da Pedra, em frente à estação de comboios de Santa Apolónia, e existiu quem projectasse que, entre esses dois pólos, a cidade se iria transformar. Mas esteve longe de acontecer. Existiu realmente um efeito Expo nos anos que se seguiram mas apesar de tudo foi um impacto delimitado. Começou a sentir-se uma maior exigência na forma como o espaço público era vivido pelos cidadãos. A relação com o rio foi revalorizada. E o mobiliário urbano começou a ser olhado de outra forma.

Recuperou-se uma zona industrial anteriormente votada ao abandono, mas esse alicerce não contagiou as áreas circundantes. Curiosamente, exactamente 20 anos depois, aquela zona, sinalizada por Marvila, Xabregas, Beato ou Poço do Bispo, transmite sinais de dinamismo. A alavanca já não é uma grande intervenção urbanística, mas uma simbiose de iniciativas privadas, políticas públicas, actividades culturais e um ambiente de boémia, assinalado pela mistura de cafés, bares, restaurantes, galerias de arte, salas de concertos ou espaços de co-criação. Na essência, apesar de diferenças, o mesmo modelo de regeneração urbana que tem ocorrido noutras zonas da cidade nos últimos anos (do Cais do Sodré a Santos, de Alcântara ao Martim Moniz e Intendente).

Foto
Antigos armazéns da Abel Pereira da Fonseca, em Marvila Enric Vives-Rubio

O que está a acontecer ali era previsível. Pela possibilidade de reutilização de espaços inexplorados. Pela pressão turística noutros pontos mais centrais. E pela própria configuração que a cidade foi adquirindo. Claro que, por enquanto, esse dinamismo ainda é muito localizado numa pequena parcela, mas já se percebeu que aquela extensa e heterogénea faixa da cidade irá ser nos próximos anos alvo de uma renovada atenção. Interessa pois perceber como é que essa requalificação pode ser desencadeada, atendendo às especificidades do lugar. E elas são inúmeras.

Há zonas ribeirinhas pós-industriais ainda ladeadas de elementos habitacionais do tempo industrial. Há pátios e vilas. Há urbanizações de habitação social e algumas de realojamento. Há população envelhecida, mas também camadas populacionais de perfil mais rejuvenescido e alguma diversidade cultural. Há o enorme empreendimento da Matinha que está a ser construído e que receberá cerca de 2500 pessoas, acabando por funcionar como a extensão natural do Parque das Nações, para as classes mais altas. Há a cedência da Manutenção Militar para incubadoras de inovação. E existem possibilidades de transformação urbana previstas – como o parque Ribeirinho Oriente, que visa reconverter a área da Matinha, Braço de Prata e Doca do Poço do Bispo em zonas de lazer – que permitem pensar numa nova aproximação ao rio, há muito impedida, pela exclusiva vocação industrial e portuária no Beato e em Marvila.

Os sinais de uma profunda recomposição da área são mais do que evidentes. O que é excelente. Mas também seria óptimo que não se cometessem erros nesta fase e aí a actuação pública é fundamental, seja no sentido de facilitar a apropriação do espaço por algumas actividades culturais ou espaços polivalentes (como a recente biblioteca de Marvila), seja de disciplinar as operações urbanísticas que lá acontecem.

Como já se percebeu, nem sempre é fácil criar o necessário equilíbrio, no meio de movimentações semelhantes, entre aquilo que é o interesse cívico ou o benefício público e meros motivos económicos ou comerciais que vão ao encontro apenas dos interesses de algumas elites, que com a estetização do espaço urbano acabam por consumir apenas aquilo que é associado ao seu estilo de vida específico, gerando-se fenómenos de gentrificação.

Nesse sentido, a condução dos destinos da zona oriental não deveria estar distante da participação local, fazendo sentar à mesma mesa instituições, associações ou moradores, com entidades públicas e privadas, organismos culturais, urbanistas, cientistas sociais e outros actores, no sentido de que a reabilitação de todo aquele território seja feito com pinças. Existe ali um lado indomesticável, orgânico e revolto que ao longo dos últimos 20 anos não foi domado. Agora, tudo leva a crer, que irá sê-lo. Mas era importante que algum desse carácter, e dessa memória, se mantivesse, fazendo-a coabitar com todas as dinâmicas contemporâneas que agora são encetadas. Esperemos que esse entendimento acabe por prevalecer.

Sugerir correcção
Comentar