E se o seu creme tivesse Cannabis? Esta é a tendência

Enquanto em vários países o uso médico e recreativo de Cannabis ganha novos enquadramentos legais, a indústria cosmética e o marketing ligado à planta aproveitam a onda.

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Haverá de certeza melhores palavras para começar um texto do que tetrahidrocanabinol (THC), mas é essa a palavra-chave para compreender que nem toda a Cannabis nasce igual. Abaixo dos 0,2% de concentração de THC — o limite imposto por lei —, há todo um outro mundo. Ainda que pouco explorado a nível de consumo de massas, algumas marcas começam a apostar nos ingredientes não psicoactivos como o canabidiol (CBD) e o cânhamo.

A partir destas substâncias podem ser criados todo o tipo de produtos: óleo de CBD, óleo de cânhamo, cremes hidratantes, protectores solares, champôs, gel de banho, soros para o tratamento de acne, sabonetes e até produtos para bebés. O cânhamo é até utilizado em outras categorias, como as bebidas (cerveja de cânhamo, por exemplo) e têxteis.

Numa fotografia partilhada em Novembro no Instagram, a empresa americana Cap Beauty — especializada em produtos naturais — mostra uma despensa cheia para o Dia de Acção de Graças. Na prateleira de cima, lêem-se nomes que serão familiares a qualquer pessoa minimamente atenta às tendências alimentares, desde o chá matcha à manteiga de coco. Em cima do pó de umami, está um dos produtos mais recentes da marca, The Daily Hit.

É uma fórmula com base no óleo de CBD, para uso diário. “Considerem isto a nova adição aos vossos rituais de bem-estar”, explica a CAP Beauty na apresentação do produto. Quase que poderia ser uma paródia ao estereótipo dos autodenominados gurus da saúde e bem-estar: “Adoramos usar este óleo para completar as nossas saladas e sopas verdes e para elevar o nível dos nossos batidos”, lê-se ainda.

Propaganda positiva

A propaganda positiva que a Cannabis tem recebido em meses recentes tem sido um motor para o desenvolvimento destes produtos não psicoactivos. A Cannabis já não tem a mesma conotação negativa e a indústria cosmética tem aproveitado “o hype mediático que o CBD está a ter a nível internacional para criar novos produtos e abrir novas gamas de venda”, comenta Dinis Dias, vice-presidente da Cannativa — Associação de Estudos sobre Canábis. Há um ano no Canadá — onde esteve a fazer consultoria para uma empresa —, regressará em breve a Portugal, onde é proprietário da cadeia da cadeia de lojas Cognoscitiva.

A motivação das grandes empresas para investir neste tipo de produtos é maior a partir do momento em que se apercebem de que o potencial de negócio é de muitos milhões de dólares. De acordo com a Brightfield Group — que conduz estudos sobre a indústria da Cannabis —, o mercado de CBD extraído do cânhamo atingirá mil milhões de dólares (824,5 milhões de euros, aproximadamente) em 2020, com um crescimento médio anual de 55%.

A indústria de beleza e cosmética não descobriu a pólvora, sendo as propriedades agora anunciadas há muito conhecidas. A tendência, aponta Dinis Dias, é que estes produtos se tornem mainstream, “à medida que se vai retirando o estigma de droga, loucura e morte e a associação a hippies e charros”. Em Portugal, o mercado e CBD é residual, mas com um “potencial de crescimento brutal”.

Para a médica dermatologista Manuela Cochito — com clínica em Lisboa —, qualquer possível benefício dos produtos de uso tópico com estas substâncias não justifica o risco de intoxicação dos mesmos, por menor que seja. A única vantagem que identifica é a presença de ácidos gordos essenciais. No entanto, estes podem ser encontrados em outras substâncias, como óleo de amêndoas doces ou o óleo de argão, refere. Assim, pelo menos na sua prática clínica, desaconselha fortemente este tipo de produtos. “A pele é um órgão que absorve tudo”, lembra.

Sobre o parecer emitido esta semana pela Ordem dos Médios, que concorda com uso medicinal de Cannabis para fins concretos e na forma de medicamento, esclarece que “não se aplica à dermatologia”. No que toca ao mercado de produtos cosméticos, o uso de cânhamo como ingrediente é bem mais vasto e explorado num maior número de categorias. Já o CBD encontra-se mais frequentemente em produtos com algum fim terapêutico, como óleos ou suplementos ou gel de alívio de dores. Mas começam a surgir produtos como o bálsamo para os lábios com infusão de CBD, da marca Vertly — uma empresa fundada em Agosto por uma ex-editora da revista feminina W, Claudia Mata, e o seu marido, Zander Gladish. Outra marca a desbravar caminho é a Wink, que tem desde um sérum (óleo concentrado) de rosto a um stevia (adoçante natural) em líquido.

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Há 20 anos que a Body Shop criou uma linha de cânhamo, que ao longo tempo se tornou um ícone da marca e ainda hoje é um dos produtos mais populares, com 16 milhões de unidades vendidas nos cinco últimos anos. “A nossa fundadora, Anita Roddick, foi uma pioneira no uso de cânhamo nos produtos de beleza e lutou contra o estigma relacionado com a planta na altura, que, de certa forma, ainda existe hoje”, disse ao P2 uma representante da marca. Em 1998, refere ainda, uma das lojas da Body Shop em França foi alvo de uma rusga policial, que resultou na apreensão de todos os produtos de cânhamo.

E a Body Shop teria interesse em desenvolver produtos com CBD? “É um grande desafio trabalhar com um ingrediente tão controverso, como sabemos bem”, começa por referir a porta-voz, avançado apenas que a marca vai continuar a “apoiar e a procurar a inovação”.

Vazio legal

As sementes de cânhamo e seus derivados são permitidos em Portugal, mas o estatuto legal do CBD já é mais confuso. Se, por um lado, são autorizados produtos com uma concertação de tetraidrocanabinol (THC) inferior a 0,2%, é também proibida por lei a exploração dos extractos de Cannabis, que está inscrito na tabela de substâncias controladas pelo Infarmed, explica Dinis Dias. Ora, as sementes de cânhamo que se encontram em qualquer supermercado (muitas vezes denominado como cânhamo industrial) é explorado em forma de semente. Já o CBD é em grande parte extraído da planta do cânhamo, sendo por isso considerado um extracto de Cannabis. Ou seja, funciona num vazio legal. “É uma zona cinzenta. Na altura em que se fez a legislação não se sabia que se podiam fazer extractos de Cannabis não psicoactivos”, esclarece o vice-presidente da Cannativa. Mas o certo é que existem várias lojas em Portugal que vendem produtos com CBD e há mais opções disponíveis online.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou recentemente que o CBD no seu estado puro não fosse sujeito a controlos internacional rigorosos. Num relatório preliminar publicado em Dezembro, a OMS avançou que, de acordo com testes conduzidos em seres humanos e animais, “não é provável que o canabidiol seja consumido exageradamente ou crie dependência, como outros canabinóides, como THC”, adiando ainda uma avaliação mais completa para Maio de 2016.

Talvez devido a esta instabilidade, as empresas estejam ainda reticentes em investir fortemente em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos com CBD. Também nos Estados Unidos o CBD é tecnicamente legal. No entanto, aponta a dermatologista Sejal Shah à Quartzy, “as empresas de beleza não querem investir milhares de euros em produtos que serão mais tarde retirados das prateleiras”.

Há um entrave ao desenvolvimento da indústria por empresas portuguesas, denuncia ainda Dinis Dias: “Os agricultores não podem vender sementes de cânhamo à indústria cosmética ou de alimentação [sendo que estas têm de estar certificadas como tendo um teor de THC inferior a 0,2%], mas podem importá-las e vender nos supermercados.” Aquilo que vemos nas superfícies comerciais “é tudo importado”, afirma.

Uma das moções que a Cannativa vai apresentar em breve aos grupos parlamentares é a “transferência das competências para a fiscalização e regulamentação do cultivo de sementes certificadas como não tendo THC para o Ministério da Economia e [Ministério] da Agricultura”, saindo da  esfera do Infarmed.

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Em Portugal, já existem inclusive plantações de Cannabis medicinal de empresas estrangeiras. O país “tem capacidade de produção, de transformação e investigação e, neste momento, o que estamos a fazer é a dar essa oportunidade de negócio a multinacionais”, critica o vice-presidente da Cannativa.

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