Rio, Santana e a treta da “matriz social-democrata”

Tanto no PSD como no PS, a ideologia é mera retórica para chegar ao poder.

O sector mais à esquerda do PSD farta-se de falar na “matriz social-democrata” do partido, que Passos Coelho teria alegadamente esmigalhado. Contudo, para quem tem acompanhado as eleições internas, há duas coisas muito difíceis de perceber: 1) que matriz é exactamente essa?; 2) qual dos candidatos à liderança do PSD, Santana Lopes ou Rui Rio, está em melhores condições para colar os seus cacos?

À partida, dir-se-ia que a “matriz social-democrata” do PSD significa uma grande admiração pelo papel do Estado e o desejo de reforçar os apoios sociais que presta, e que Rui Rio, enquanto suposto candidato anti-Passos, seria aquele que mais próximo estaria de recuperar esse objecto tão digno de admiração. Santana Lopes, pelo contrário, assumindo com mais clareza os méritos do governo Passos Coelho, estaria então mais próximo de uma visão liberal para o país, com um Estado mais curto e menos pesado — mais PSL, menos PSD.

No entanto, vai-se a ver, e o que é que cada um deles andou por aí a dizer? Rio declarou que as contas públicas “devem ter superávite”, para poderem ter défice quando a economia cai. Santana recusou qualquer “obsessão pelo défice zero”. Rio disse que “faria igual ou pior” do que Maria Luís Albuquerque em termos de rigor nas finanças públicas. Santana preferiu a conversa do crescimento “acima da média europeia” e do “aumento da produtividade, do investimento e das exportações”. Rio defendeu que as reformas variassem em função da economia, e que os pensionistas pudessem receber “um bocadinho mais ou um bocadinho menos” consoante o fulgor das contas públicas. Santana discorda que as pensões possam baixar. Qual deles está mais apaixonado pela “matriz social-democrata”, afinal?

A verdade é esta: a conversa das divergências ideológicas é pura treta. O problema do PSD é, como sempre foi, sobre quem manda. Ao longo dos anos da troika, a expressão “respeito pela matriz social-democrata do PSD” quis apenas dizer “não gosto dos tipos que estão à frente do partido”. Mesmo entre os grandes ideólogos de um PSD perdido, com Pacheco Pereira à cabeça, os suspiros pela “matriz social-democrata” têm a consistência da gelatina. Um dos grandes divertimentos dos liberais portugueses é citarem artigos de Pacheco Pereira da década passada, como este publicado na Sábado em 2005, a propósito do primeiro orçamento de Estado de José Sócrates: “É o socialismo em que vivemos impregnados, e que hoje se chama ‘estado-providência’, ou ‘modelo social europeu’, que nos condena à mediocridade e à gestão no fio da navalha da cada vez menos riqueza produzida.” Sim, ele escreveu mesmo isto. Todo o texto é um mimo: “Precisamos de mais liberalismo, de mais liberdade económica, de mais espírito empresarial. Sem mais ‘crise’ (das que falava Schumpeter) e sem mais ‘boa’ insegurança, não somos capazes de mudar.”

Ora, se até Pacheco Pereira, actual porta-estandarte da “matriz social-democrata do PSD”, era um super-liberal há uma dúzia de anos, é escusado andar a fazer testes de liberalismo e de social-democracia a Rio e a Santana. Eles vão ser a cada momento aquilo que a economia do país lhes permitir. Descartada a ideologia, sobra a personalidade dos candidatos: o seu carácter, (in)competência, intuição política, e pouco mais. Eu gostava muito que o PSD estivesse a optar entre dois projectos políticos. Não está. Só está a optar entre duas pessoas. Tanto no PSD como no PS, a ideologia é mera retórica para chegar ao poder.

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