Democracia e cleptocracia

É tempo de dar confiança à vida política para a tornar séria e digna. Mais dinheiro para os partidos não, para que a democracia não se confunda com cleptocracia.

Desde 1 de janeiro de 2005, data da entrada em vigor da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, que os nossos partidos políticos beneficiam do melhor modelo de financiamento existente na União Europeia, um modelo misto que compreende as suas (deles) receitas próprias e outras provenientes de pagamentos privados e de subvenções públicas.

Dito de outro modo, falamos de quotas e outras contribuições dos seus filiados. Falamos de contribuições de candidatos e representantes eleitos em listas apresentadas por cada partido ou coligação, ou por eles apoiadas. Falamos do produto de atividades de angariação de fundos por eles desenvolvidas. Falamos de rendimentos provenientes do seu património, designadamente arrendamentos, alugueres ou aplicações financeiras, doações por herança ou legados, de empréstimos (por exemplo o Afonso empresta automóveis e a Beatriz imóveis durante a campanha eleitoral). Falamos de donativos dos apoiantes em geral (limitados anualmente a 25 salários mínimos por apoiante). Falamos, também, de subvenções públicas. Não está nada mal, convenhamos!

Assim, a cada partido que tenha concorrido a um ato eleitoral, ainda que em coligação, e haja conseguido representação na Assembleia da República, é concedida uma subvenção anual, tendo por base um cálculo percentual por cada voto obtido na última eleição legislativa.

Igualmente é atribuída uma subvenção aos partidos que se apresentem a um ato eleitoral, mas que não logrem alcançar qualquer representação. Aí, para receberem essa tal subvenção, terão de conseguir um número de votos superior a 50 mil.

Os partidos beneficiam de isenções de impostos, não estando, por conseguinte, sujeitos a IRC e a imposto de selo, nem a imposto sobre sucessões e doações. Gozam, igualmente, do não pagamento de imposto municipal sobre transmissões onerosas de imóveis, bem como de isenção de imposto automóvel nos veículos que adquiram e na aquisição e transmissão de bens e serviços que visem difundir a sua mensagem política ou identidade própria, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimédia, incluindo os usados como material de propaganda e meios de comunicação e transporte.

Esta panóplia de regalias, mesmo assim, parece não ser suficiente para saciar a gula da nossa máquina partidária. Eu, pela minha parte, entendo que as regalias existentes já não são nada razoáveis para quem recebe subvenções do Estado, porquanto alterar, ainda mais, os benefícios fiscais e aumentar o limite das doações não é admissível, além de escancarar completamente a porta aos lobbies que infestam a vida política portuguesa.

O modelo misto público-privado tem demonstrado problemas. Refiro-me concretamente a empresas que esperam receber favores em troca de donativos que o sócio realizou. Lembro que a lei não permite donativos feitos por pessoas coletivas, mas a verdade é que nada impede um sócio de uma empresa de o fazer. Este dilema que consiste em que não pode a empresa mas pode o empresário e o acionista é obscuro e devassa a democracia. Pagando o Estado subvenções que asseguram a atividade regular dos partidos, o mínimo que se pode exigir é que se proíba as empresas em que os doadores têm interesses de poderem receber contratos do sector público.

Quando se aceita doações e empréstimos, o que normalmente acontece é que mais tarde ou mais cedo alguém virá cobrar, e o pior é que quem paga é o Estado. Dito por outras palavras, lá se vai o dinheiro público sem qualquer controle ou transparência. Lembro o exemplo de Emmanuel Macron ao aprovar no passado mês de agosto um pacote de medidas legislativas com o objectivo de terminar com práticas de clientelismo e nepotismo tão useiras e vezeiras na vida política francesa. Foram elas: controlo mais exaustivo dos dinheiros recebidos e gastos pelos deputados (por exemplo, verificar se, na verdade, viajaram e fizeram realmente as despesas que apresentaram); impedir que os partidos políticos façam empréstimos ou outras operações em bancos não europeus; criar o Banco da Democracia, banco onde apenas os candidatos ou os partidos podem contrair financiamentos para as suas campanhas eleitorais; os políticos condenados por fraude e corrupção deixarão de poder candidatar-se por um período mínimo de dez anos; e, finalmente, pôr termo ao escândalo de empregar familiares dos políticos na vida pública, chamando para “trabalhar” desde o sobrinho à mulher, passando pelo filho e pela tia dos ministros, como aconteceu recentemente no seu país e que se verifica atualmente em Portugal onde, há muito, é prática corrente...

É tempo de dar confiança à vida política para a tornar séria e digna. Por isso, mais dinheiro para os partidos não, para que a democracia não se confunda com cleptocracia. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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