Renzi, Macron... e Maquiavel

São as grandes crises que criam a oportunidade das reformas. O resto depende dos políticos.

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Matteo Renzi e Emmanuel Macron suscitam comparações. Entraram de rompante na política com o propósito de tirar os seus países do “declínio” e revolucionar os sistemas políticos. É este ponto — a reforma do sistema político — que aqui me interessa focar. Tinham ambos problemas em comum mas a analogia tem limites: a Itália e a França têm culturas e instituições políticas distintas. Também as personalidades contrastam. Renzi é um homem da política mediatizada e personalizada, um viciado do Twitter. Para Macron, o poder exige distância: a presidência “jupiteriana”.

Em 2013, quando conquistou a liderança do Partido Democrático (PD), Renzi falou em resolver o “crónico imobilismo do sistema italiano” para o país “sair do pântano”. Macron, ao anunciar a sua candidatura em 2016, proclamou: “Quero fazer entrar a França no século XXI (...) e dar prioridade ao relançamento da Europa.”

Renzi conquistou o PD propondo-se “mandar para a sucata” uma geração inteira de dirigentes. “Os nossos inscritos, os nossos simpatizantes, os muitos desiludidos [perguntam-se]: quando acordarão da anestesia? Nunca darão conta de que perderam o contacto com a realidade?”

Macron não tentou refundar o Partido Socialista. Criou um movimento novo, a França em Marcha. “O que conta para mim não é reunir a esquerda, tal como não é reunir a direita. O que está em jogo é reunir a França.” Não poupou o sistema político: “Vi do interior a vacuidade do nosso sistema político. (...) Não acuso ninguém, não falo dos eleitos. Mas os aparelhos políticos, as lógicas políticas, impedem-nos de avançar. (...) A França está bloqueada.”

A tripolarização na Itália

O sistema político italiano assentava numa bipolarização de coligações, em que os grandes partidos eram reféns das minorias e grupúsculos. Renzi pretendia substituir este quadro por uma bipolarização de partidos que alternariam no poder. Negociou uma nova lei eleitoral com Berlusconi e decidiu esvaziar o Senado: o bicameralismo perfeito, em que as duas câmaras (deputados e senadores) têm as mesmas competências, era um factor de bloqueio legislativo: logo das reformas.

Surpresa: as legislativas de 2013 despedaçam o tabuleiro partidário. Com 25% dos votos, o Movimento 5 Estrelas (M5S) desfaz qualquer intento de bipolarização. Primeiro-ministro desde Fevereiro de 2014, Renzi tem um novo problema. À ascensão do M5S, juntam-se outros fenómenos: com Berlusconi em declínio, o centro-direita desagregava-se, enquanto subia a Liga, de Matteo Salvini, a réplica italiana de Marine Le Pen. Augurava-se uma deriva populista de dimensão europeia. A Itália era “o doente da Europa”.

Renzi cumpriu grande parte do seu plano de reformas. Depois, a obsessão passou para as instituições. Quando a reforma do Senado foi aprovada pelo Parlamento em Outubro de 2015, as reacções dos politólogos foram eloquentes. “É uma reforma de que o país tinha absoluta necessidade, porque o sistema italiano tornara-se ingerível. O país esteve paralisado durante demasiado tempo” (Franco Pavoncello). A iniciativa era então apoiada pela larga maioria dos italianos.

Havia um compromisso. Para demover as resistências, o Governo aceitou submeter a reforma a referendo. Berlusconi avisou: “É um sistema perigoso que coloca todos os poderes nas mãos de um homem.” E o M5S lançou uma campanha pelo “não”, que arrastou a oposição interna do PD.

Renzi começava a perder “o toque mágico”, escreveu o jornalista Gianni Riotta. “E cometeu o pecado mortal da soberba. Anunciou a decisão de se demitir se as reformas constitucionais não fossem aprovadas.” Foi ele que criou a frente “todos contra Renzi”. Na noite de 4 de Dezembro, perdeu e demitiu-se. Com a derrota, arrastou a queda da sua estratégia para confinar o populismo. Os vencedores da noite foram os “cinco estrelas”.

A França de Le Pen

O quadro da França era deprimente. O sistema político entrou em decomposição quando Marine Le Pen venceu as eleições europeias de 2014 e as regionais de 2015 com scores superiores a 20%.

A cena política deixa de ser biplolar para dar lugar a uma instável tripolarização. Anotava o politólogo Jerôme Fouquet: “O nosso sistema político foi concebido para uma organização bipolar: PS e aliados de um lado, a direita e os centristas de outro. (...) Se a FN estiver sistematicamente na segunda volta [das eleições], um dos dois grandes partidos será levado a desaparecer da segunda volta.” Nenhum dos três partidos se podia aliar com outro. O sistema estava à beira da implosão e crescia o desafio de Le Pen, com a sua “estratégia da bola de neve”: uma vitória traz uma outra, maior do que a precedente. “A França é o grande problema da União Europeia”, sentenciava em 2015 o italiano Mario Monti.

O leitor tem presentes as peripécias da campanha presidencial francesa: o suicídio do PS, a dilaceração da direita e a humilhação de Marine Le Pen na segunda volta. “Tudo mudou em 2016-2017”, escreveu Pascal Perrineau. “Os grandes aparelhos da esquerda e da direita entraram em crise quase terminal. A esquerda está dilacerada em famílias irreconciliáveis. A direita implodiu com a questão Fillon. Emmanuel Macron e a sua oferta política ‘e de esquerda e de direita’ recuperam os pedaços esparsos dessa fragmentação.”

A clivagem esquerda-direita permanece viva mas deixou de ser o eixo da política francesa. Direita e esquerda voltarão a reemergir quando assimilarem a nova realidade: as grandes questões — da Europa ao papel do Estado, passando pela globalização — fracturam-nas. Há duas esquerdas e duas direitas.

Uma vez eleito e apoiado na função presidencial da V República — diferença fundamental em relação à Itália —, Macron ocupa o espaço central do tabuleiro político, remetendo para a periferia os dois extremos de ambos os campos. O resto pertence ao passado.

Fortuna e virtú

Renzi e Macron beneficiaram de um extraordinário concurso de circunstâncias, a começar pela desagregação dos sistemas partidários e pelo desencanto dos cidadãos perante a política. Mas a sorte não explica as mudanças que se seguiram. Na Itália, a grande reforma de Renzi acabou por falhar, em benefício da antipolítica. Na França, traduziu-se pela rejeição dos extremos.

Maquiavel explicou o papel da sorte na política. A fortuna não é a mera sorte, é também a ocasião através da qual um político pode exercer a virtú — não no sentido de virtude, mas enquanto capacidade de previsão e coragem de acção. Sem a fortuna, sem o contexto de uma grande crise, o político não terá a oportunidade de mostrar a sua virtú. A fortuna, diz Maquiavel, pode ser comparada a um rio em cheia que arrasta tudo o que encontra. O que o homem deve fazer é construir diques. A fortuna arbitra metade das acções do homem, a outra metade está nas nossas mãos.

Renzi terá tido a virtú, ou o ímpeto, para conquistar o poder. Diferente é o seu exercício. Disse alguém que o florentino Renzi não entendeu o florentino Maquiavel e jogou à roleta com a fortuna.

Mais sólida é a base de poder de Macron. O poder presidencial domina o conjunto do sistema. Aconteceu, sem tocar na Constituição, uma radical reforma política.

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