Esqueça o enologuês do especialista, a verdade está no vinho

Quando estamos à mesa, num almoço ou num jantar, faz sentido tentar decifrar e descrever cada partícula do vinho? O que realmente ganhamos se passarmos a refeição a fazer uma revisão das nossas memórias gustativas, a imaginar todos os cheiros e sabores da nossa vida para ver quais se encaixam naquele vinho em concreto?

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Martin Henrik

Sem qualquer ironia, curvo-me perante todos aqueles que ao provarem um vinho descobrem mil e um aromas e sabores. É quase intimidante a facilidade com que alguns enumeram frutas, flores, especiarias e tudo o que se possa imaginar que vão encontrando num vinho à medida que levam o copo ao nariz e fazem circular um pouco de líquido pela boca. É nessas alturas que penso dedicar-me de vez à agricultura e deixar a crítica de vinhos para quem sabe.

Porém, também é nessas alturas que me lembro das palavras sábias da renomada crítica inglesa Jancis Robinson. Na introdução do seu livro Curso de Vinhos, ela escreve o seguinte: “O que interessa no vinho é que dê o maior prazer ao maior número possível de pessoas. Quem diga outra coisa — por exemplo, que apreciar um vinho é coisa difícil, só ao alcance de uma elite muito especial que saiba merecê-lo — deve ser tratado com desprezo. Pela minha experiência, alguém que se afirma perito em vinhos tem, invariavelmente, pouco a oferecer, a não ser preconceitos.” 

Ninguém prova um vinho da mesma maneira, nem o vinho sabe exactamente igual a mais do que uma pessoa. Há vinhos que dizem pouco a uns e que a outros os deixam emocionados, porque despertam neles boas memórias. A prova tem muito de emocional e de físico. Se estivermos tristes, de certeza que avaliamos o vinho de maneira diferente do que se estivéssemos alegres. Por outro lado, o vinho também tem vida própria, também se vai transformando, umas vezes para melhor, outras para pior. Por isso é que em relação a certos vinhos velhos se diz que não há boas colheitas, mas sim boas garrafas.

Cada um de nós é único e o impacto que um vinho nos provoca também é único. Logo, ninguém deve ficar deprimido se não encontrar num tinto a nota a alcaçuz ou o toque a pederneira que só o especialista vislumbra. O que é que isso muda no prazer final? É por conseguirmos detectar e descrever muitas especiarias e notas mais químicas que o vinho nos vai saber melhor?

Claro que conseguir detectar alguns defeitos, como o famoso cheiro a rolha, ou conhecer melhor o perfil das castas e das regiões pode ajudar-nos a perceber melhor o vinho e a tirar ainda mais prazer dele. Não perdemos nada em querer saber sempre um pouco mais. O pior é quando nos tornamos descritores, em vez de provadores, quando trocamos a linguagem básica da emoção pela linguagem pseudo-erudita da tribo, o enologuês. A verdade está no vinho (já dizia Kierkegaard), não no especialista.

O mais fascinante no vinho é a sua dimensão social. É podermos desfrutá-lo com alguém, de preferência com quem mais gostamos. Esta frase tão simples é todo um programa filosófico. Tem a ver com prazer e partilha, duas condições essenciais para suportarmos melhor ou dar mais sentido à nossa existência. Ora, quando estamos à mesa, num almoço ou num jantar, faz sentido tentar decifrar e descrever cada partícula do vinho? O que realmente ganhamos se passarmos a refeição a fazer uma revisão das nossas memórias gustativas, a imaginar todos os cheiros e sabores da nossa vida para ver quais se encaixam naquele vinho em concreto? E mesmo que estejamos numa prova técnica, sem comida, faz sentido ser tão minucioso na descrição de um vinho?

Embora a quantidade de evocações gustativas possa ser reveladora da complexidade de um vinho (e também da sensibilidade do provador), não ganhamos muito em irmos ao detalhe quase microscópico, quando o essencial se resume a meia dúzia de conceitos. Porque o essencial é saber se o vinho é equilibrado ou desequilibrado nos seus principais alicerces (álcool, acidez, estrutura, aroma, sabor), se é simples ou complexo, se expressa ou não as castas e o lugar, se tem algo que o distingue e diferencie. No fundo, se é mau, bom, muito bom ou extraordinário.

Ok, já imagino a resposta: “Mas o que é extraordinário para ti pode ser mau para mim.” Aqui já não há nada a fazer. A subjectividade é isto mesmo. Vale a pena refutar quem acha que o vinho bom é aquele de que se gosta? Se se gosta, como pode ser mau? Por vezes até pode. Hoje, apreciamos coisas que antes detestávamos, e vice-versa. O gosto educa-se. Por isso é que é tão importante provar, comparar e estar sempre de mente aberta, sem preconceitos e ideias feitas, como essa de acharmos que os nossos vinhos são os melhores do mundo. Enquanto não provarmos os vinhos dos outros, os nossos vão ser sempre os melhores.

Provar muito e comparar muito, mas sem complicar, para não desperdiçarmos o melhor do vinho. No liceu tive um professor de Filosofia que, quando o questionei sobre o sentido da vida, de onde viemos e para onde vamos, me respondeu: “A melhor resposta é não pensar nisso”. Com o vinho devemos usar da mesma sabedoria. O vinho é para ser desfrutado, não para ser dissecado. Dessa parte encarregam-se os investigadores. Mas até desses devemos desconfiar. Quase todos os meses surge um novo e contraditório estudo sobre os efeitos do vinho na saúde. Um dos últimos é dos bons: diz que beber um copo de vinho faz melhor ao cérebro do que resolver uma equação matemática ou jogar sudoku. Qualquer dia ainda vão falar bem das sopas de cavalo cansado.

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