Leeuwarden: faça chuva ou sol, a porta está aberta

Há poesia em sacos de batatas e uma aldeia com 128 famílias que contam histórias que podem ser vistas e ouvidas daqui a 100 anos. A cidade holandesa é Capital Europeia da Cultura a partir do dia 27 e o seu programa foca-se na comunidade e na sua relação com a natureza e o mar.

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Ruben Hamelink
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hans Jellema
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Ruben Hamelink

Iepen Mienskip.

Pedi a Puck Reus que me traduzisse.

- O que é isso?

Escrevi as duas palavras numa folha em branco e estendi-a à mãe.

- Não sei.

De seguida, escrevi mais duas palavras, ocultando a segunda. Na primeira, que coloquei diante dos olhos da mãe, estava escrito Snits e interroguei-a sobre a localização, algures na Holanda.

- Não faço a mínima ideia.

Depois, como se de um jogo se tratasse, desvendei a segunda. Ela não teve dúvidas.

- Sneek? É na Frísia. Uma vez por ano, organiza a Sneekweek, com uma mostra de barcos e competições entre veleiros. É considerado o maior evento de vela em vias navegáveis interiores da Europa.

Mãe e filha são holandesas e, como tantos outros que não vivem na Frísia, não percebem a língua falada nesta província do Norte do país. Logo, não compreendem o significado de Iepen Mienskip.

É esse, precisamente, um dos objectivos de Leeuwarden-2018, como uma das capitais europeias da cultura.

“Corre para o comboio, pega no teu carro ou salta para a tua bicicleta para estares lá, porque não vais querer perder o fim-de-semana de abertura de Leeuwarden-Friesland 2018. A 26 e 27 de Janeiro, experimenta connosco como se parece o nosso sonho de Iepen Mienskip (sociedade aberta). Uma nova era apenas pode ser iniciada pelas pessoas que acreditam que todos significamos algo para cada um de nós e para o mundo. Faça sol ou chuva, não podemos começar sem ti.”

Um desafio. Um prenúncio para histórias. Tryater, uma companhia de teatro de Leeuwarden que celebrou 50 anos em 2015, com 500 espectáculos por ano para uma audiência estimada em 50 mil espectadores, foi à procura da resposta para uma pergunta aparentemente simples: quando é que, realmente, o Iepen Mienskip, teve sucesso — e a resposta surgiu pela voz de uma entre as muitas pessoas interrogadas. “Quando tivemos sucesso em ouvir-nos uns aos outros.” Essa capacidade de ouvir — ou de se fazer ouvir — tem início, no contexto de Leeuwarden 2018, no dia 26, uma sexta-feira, exactamente ao meio-dia, quando muitas das crianças da Frísia estiverem preparadas para cantar em conjunto, até que a noite substitua o dia. E, nessa altura, todos os museus e habitantes da Frísia, desde Schiermonnikoog até Oudemirdum, de Zurich, com menos de duas centenas de residentes, até Appelscha, situada no coração do parque nacional Drents-Frise Wold, uma das maiores reservas naturais da Holanda, irão abrir as suas portas para confessar que história gostariam de transportar para o futuro e porquê.

Leeuwarden, com menos de 100 mil habitantes, é uma cidade (um estatuto garantido já em 1435) com uma história vibrante, pela qual é fácil de caminhar ao encontro das suas principais atracções. Ao início da manhã, sob um céu pintado de cores cinzentas, sento-me na Waagplein, a praça dominada pela pequena Waag, onde em tempos ancestrais, entre 1598 e 1884, se pesava a manteiga e outros produtos — mas mais a manteiga, ao ponto de ser conhecida por Boterwaag. Ao lado do edifício histórico, construído em finais do século XVI em estilo renascentista, correm as águas serenas de um canal atravessado por elegantes pontes e perfilam-se fachadas seculares que adquirem ainda mais charme ao longo de ruas estreitas como a Naauw, a St. Jacobsstraat e a Oosterstraten, com as suas lojas tão cheias de graça e uma atmosfera em que se respira quietude.

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Um ano num dia.

Mais uma ideia interessante do projecto Leeuwarden 2018. No sábado, dia 27, o foco estará colocado na cidade que é capital da Frísia, tantas vezes ignorada pelos turistas que apenas têm em mente chegar às ilhas de Terschelling ou Ameland, Vlieland ou Schiermonnikoog.

Durante o dia, os visitantes serão conduzidos para descobrirem Leeuwarden e, ao mesmo tempo, para serem despertados para o programa anual, prometendo uma emoção que será exacerbada quando a noite tombar sobre a cidade e, com ela, o sentimento de união — é o tempo ideal para um murmúrio, para a vaga aumentar, como uma corrente que arrasta a multidão até às praças de Leeuwarden, sentindo-se pequena perante o peso e a imponência da torre da Oldehove, com uma inclinação que se tornou evidente pouco depois de começar a ser construída, em 1529, e mais notória ainda quando alcançou uma altura de 40 metros, num perfeito contraste com a estátua erecta de Pieter Jelles Troelstra, um socialista holandês que liderou um movimento revolucionário após a I Guerra Mundial.

Gasto algum do meu tempo na Naauw, de olhos fixos no canal rasgado uma vez ou outra por um barquinho, caminho mais um pouco, uns breves minutos, até Voorstreek, o segundo maior canal da cidade, com restaurantes, esplanadas, galerias, bem como um dos postais mais fotografados de Leeuwarden, a Centrale Apotheek. Com a sua fachada em estilo Arte Nova, acolheu, desde a sua construção, uma farmácia e foi completamente restaurada em 2002 para atrair mais olhares, como um estímulo para continuar a percorrer as ruas da cidade e descobrir, não muito longe, a neogótica igreja de São Bonifácio, construída originalmente, no início do século XIV, para ser um mosteiro e com um interior onde se destaca o famoso órgão de 1727 de Christian Müller.

Mata Hari

Para os portugueses, o nome é na maior parte da vezes associado a futebol — Heerenveen. Mas é esta cidade, da província da Frísia, no Het Posthuis Theater, que acolhe o projecto Façace: de laaste dag van Mata Hari, os últimos dias da espia holandesa em retrospectiva,  um percurso que também pode ser observado a partir de 2 de Abril, de terça a domingo, entre as 11h e as 17h, no museu da Frísia, seguindo a temática Mata Hari, de mythe en het meisje, que se pode traduzir por Mata Hari, a mulher e o mito.

Para Leeuwarden, no caso de Mata Hari, tudo começou antes da cerimónia de abertura como capital europeia da cultura, precisamente cem anos após a sua morte, em Outubro de 1917, com a maior exposição alguma vez apresentada ao público, desde objectos pessoais a fotos, de álbuns de recortes a cartas, passando por ficheiros militares, de tudo um pouco foi apresentado para melhor se conhecer essa personagem mítica que quase ninguém identifica como Margaretha Zelle, a rapariga que se esconde atrás da icónica Mata Hari.

Nativa de Leeuwarden, Margaretha Zelle, talvez marcada pelo destino — para quem nele acredita — viajou pelas Índias Ocidentais, até ser encontrada, como alguém que ressuscita, nos teatros de dança de Paris, cada vez mais envolta numa teia de intriga que definia a I Guerra Mundial. Com apenas 29 anos, Margaretha Zelle, essa filha de Leeuwarden que este ano festeja a cultura, era uma sensação na capital francesa, encantava audiências com as suas danças exóticas, com tanta dimensão que as páginas dos jornais da época se tornavam insuficientes para descrever, pelo menos durante dez anos, tamanha manifestação de sensualidade e de glamour.

As suas constantes viagens pela Europa, os seus casos amorosos com homens de uniforme, mais assíduos do que as suas errâncias pelo Velho Continente, uns e outros, durante a I Guerra Mundial, concorreram para tornar Margaretha Zelle suspeita aos olhos dos serviços secretos franceses, que a tomaram como espia dos alemães antes de a executarem, em Outubro de 1917, numa floresta próxima de Paris.

A aldeia das portas abertas

É com o pensamento em Mata Hari que vagueio pela Nieuwestad antes de me deter, para um tempo de repouso, no Prinsentuin, um bonito parque cuja construção original remonta a 1648 e um espaço exclusivo do príncipe Willem Frederik que mais tarde, em 1795, foi aberto ao público. Depois, enquanto não deito um olhar mais demorado ao programa cultural, ando sem pressas pelo Museu de Cerâmica, o Princessehof, abrigado numa magnificente mansão do século XVII, com a maior colecção de azulejos do mundo, uma impressionante selecção de louça de Delft e outras obras de diferentes lugares do mundo, com especial destaque para peças japonesas, chinesas e vietnamitas em exposição.

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E volto ao programa.

Com lugar também garantido nos anos vindouros, está o não menos interessante projecto Iepen Doar(p). Uma vez que o tema central de Leeuwarden-Friesland 2018 é a comunidade, importa perceber como se relacionam os frísios com as suas aldeias e as pessoas à volta e, nesse sentido, foi criado o Iepen Doar(p), que significa aldeia (doarp) e porta (doar) aberta. Para esse efeito, foi escolhida a mais jovem povoação da província, Veenwoudsterwal, retratando cada uma das 128 casas através de som e imagem, cada uma com a sua história particular, comovente, por vezes, mas sempre valiosa, histórias que pode escutar, se tiver interesse e paciência, de segunda a sexta, entre 12 de Fevereiro e 8 de Agosto.

Ao coleccionar e partilhar estas histórias, os promotores do projecto acreditam no aumento da interligação entre habitantes e no fortalecimento da comunidade. Os trabalhos, iniciados no início do ano passado, poderão ser vistos nos media locais e, durante 128 dias consecutivos, em www.iependoarp.eu ou no canal regional de televisão Omrop Fryslân, um registo que o centro histórico e literário frísio, Tresoar, se encarregará de manter online mesmo depois de 2018, de forma a que o Iepen Doar(p) permaneça como historiografia para as próximas gerações — dentro de 50 ou 100 anos ou mais, é possível olhar para trás e ver e ouvir como era a vida nesse tempo em Veenwoudsterwal. 

Por muito estranho que pareça, a batata pode ser uma fonte de inspiração e, pelo menos em Leeuwarden, pode até desempenhar um papel importante no mundo da arte. Todos os anos, é organizado o popular festival Bildtse Aardappelweken — as semanas da batata da Bildt —, no município de Het Bildt, cuja capital é Sint Annaparochie e que abarca pouco mais de 15 quilómetros de costa, com um terreno fértil que transforma a agricultura na sua maior fonte de receitas. No lugar habitado maioritariamente por holandeses do sul, com um dialecto próprio (o bildts, uma mistura de holandês, como é falado no sul, com frísio), plantam-se cebolas, frutas (especialmente maçãs) e batatas (é provável que já tenha comprado, uma vez ou outra, a marca Bildstar). Este ano, o festival terá outra designação, Potatoes go wild, e, em parte devido ao projecto Batatas Poéticas, este ano alcançará Malta, com quem Het Bildt trabalha há mais de 160 anos, numa cooperação que desde 2014 assumiu uma nova dimensão graças à troca de poesia em sacos de batata de semente.

Parece complicado mas não é.

Desde a última metade do século XIX, Leeuwarden e Malta tornaram-se cúmplices e estreitaram laços na agricultura, na cultura da batata, com trocas pelo menos duas vezes por ano. Mal a batata de semente chegava de Leeuwarden, logo era plantada pelos agricultores malteses, crescendo até ser enviada, por via marítima, de volta à cidade holandesa. Poesia em sacos de batata é um projecto que faz uso deste ciclo, deste trajecto, para uma troca de poesia em maltês, em frísio, em inglês, acompanhando a produção agrícola enquanto se celebra a comunhão do título de capital europeia da cultura. Através deste projecto singular, foi criada uma cadeia na qual as batatas alimentam a poesia e, por sua vez, a poesia alimenta o cérebro, funcionando como alimento para o pensamento.

A mulher que é um dique

Associado ao projecto Potatoes go wild há outros, admiráveis, plenos de imaginação, como Fruchtbere grônd, o solo fértil, por exemplo, no qual 25 artistas da Frísia Ocidental, da Frísia, da Frísia setentrional, do leste da Alemanha, vão apresentar uma exposição em sete armazéns de batata ao longo do Oudebildtdijk, um dique em Het Bildt.  Mas as batatas não são apenas um objecto de arte na Frísia. Também se comem em Het Bildt. Quem visitar a província durante 2018, neste ano tão especial, será convidado a juntar-se ao Ete bij de boer XL, para uma refeição elaborada à base do tubérculo nos armazéns onde os artistas irão apresentar as suas obras: come-se enquanto se aprecia arte — potatoes go wild.

O programa alarga-se também ao Wadden Sea, Património Mundial da UNESCO desde 2009, que será palco do projecto Sense of Place, com a promessa de um roteiro de arte pleno de natureza, de culturas e de histórias. Joop Mulder, fundador e antigo director do Oerol, festival cultural que tem lugar na ilha de Terschelling (este ano entre 15 e 24 de Junho e também englobado nos festejos de Leeuwarden-Friesland 2018), é o mentor de uma ideia que prima pela originalidade e que pretende mostrar aos turistas como é única a paisagem do Norte, a beleza da natureza e a riqueza das suas histórias. No total, podem ser apreciadas quase três dezenas de obras de arte em grande escala, inovadoras, uma visão singular da arquitectura paisagística, correndo ao longo de toda a costa do Wadden Sea, entre Den Helder e Dollard.

Ninguém mais do que Joop Mulder parece entusiasmado com a ideia. “De acordo com Marcel Proust, a verdadeira viagem da descoberta consiste não em procurar novos lugares mas em vê-los de forma diferente. Sense of Place é uma boa iniciativa para ver Wadden numa perspectiva diferente. Uma perspectiva que oferece alimento para novas formas de arte numa paisagem exclusiva.”

É o caso, por exemplo, de Dijk van een Wijf, o dique de uma mulher, reclinada, sem abstracções, com um comprimento de 100 metros e uma altura entre os 15 e os 20 metros nas ancas e nos ombros, com as suas formas voluptuosas, protegendo o ser humano e o solo fértil para a semente de batata e outros vegetais do mau humor do mar — uma mulher que pode ser vista à distância, mal se chega de ferry ao porto da ilha de Ameland, com as suas quatro aldeias (Buren, Nes, Ballum e Hollum) tão pacatas. Faça chuva ou sol, as portas estão abertas para a cultura na Frísia.

Regresso à Waagplein com vontade de explorar outros recantos desta cidade adorável e tão pouco explorada. As nuvens negras prometem mais chuva do que sol.

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