Boletim meteorológico: tempestade aproxima-se

Aos 11 dias do mês de Janeiro, dou por mim a ter a primeira crise existencial de 2018. Todo um novo recorde na minha vida. Normalmente, as primeiras horas do ano já são todo um desafio à minha estabilidade mental. Mas 2018 até começou de forma relativamente calma

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Taylor Hernandez/Unsplash

“Pilar, és um desastre”, disse eu a mim própria enquanto esperava que o computador arrancasse.

Há cerca de um ano, na véspera do exame de Cirurgia I, tinha dado com esta frase quando estava a acabar um texto em vez de estudar. Agora, com tanta coisa que muda num ano (e que mudou no meu em particular), a escassos cinco dias do exame de Cirurgia II (inspira, bate com a cabeça na parede, expira), dou por mim a tirar a noite para um rendez-vous entre mim e o Word (ou as notas do telefone, porque o computador teima em não terminar as actualizações). Deixámos as crianças (leia-se os livros) em casa (na divisão do lado) e somos tão bons pais que juro que consigo ouvi-los a chamar por mim desesperadamente. Bato com mais força nas teclas e subo o volume da música (playlist sexy do Spotify porque afinal de contas é date night) para ver se deixo de os ouvir. O peso na minha consciência diminui ligeiramente. Deve ter sido de bater com a cabeça na parede, se calhar caí para o lado, estou inconsciente e ainda não reparei. As doses industriais de chocolate também ajudam.

Aos 11 dias do mês de Janeiro, dou por mim a ter a primeira crise existencial de 2018. Todo um novo recorde na minha vida. Normalmente, as primeiras horas do ano já são todo um desafio à minha estabilidade mental. Mas 2018 até começou de forma relativamente calma. Só quebrei a minha louvável resolução de comer de forma mais saudável umas 43 vezes, isso é sempre um ponto positivo. Não obstante, e apesar do começo prometedor, dei por mim a quebrar — mais do que a tablete de chocolate, quero dizer — ontem à tarde.

“Pilar, não é altura para sentimentos”, avisou-me o companheiro de estrada do costume, antevendo antes de mim — como sempre, seu desgraçado, como é que fazes isso?! — que vinha aí tempestade em plena época de exames.

Precipitada por acontecimentos inesperados, voltei a dar por mim num daqueles turbilhões engraçadíssimos de se ver se fizermos um certo exercício de distanciamento emocional. Um daqueles tornados perfeitos que só a natureza — a terrena ou a humana — pode provocar. Do tipo que provoca a eterna contradição latente no coração de todos os aventureiros: estamos dentro do carro com o pé ao de leve no acelerador, no micro-segundo antes de o pisar a fundo. Mas vamos contra aquilo ou fugimos a sete pés? Tão monstruoso e tão bonito.

“Pilar, és um desastre”, repeti para mim outra vez, sempre tão hiperálgica, hipersensível e hiperpreocupada. Tinha-se tornado a minha frase de recurso perante a terrível evidência transversal a qualquer ser humano: independentemente dos meus esforços, os ventos — e os tornados — sopram quase sempre como lhes apetece. Só assim se justifica que tendo plena consciência da crise nuclear que me espera no próximo mês, ainda esteja aqui sentada a escrever de forma quase calma, em vez de seguir uma das duas alternativas que um adulto saudável e com bom senso consideraria: 1) retomar o estudo ou 2) chorar em posição fetal. A não ser, pensei eu quase em jeito de génio (ou de ser humano ligeiramente embriagado que acredita ter descoberto a pólvora), que seja exactamente esta a altura certa para sentimentos.

Relembro, como faço frequentemente quando preciso de me reposicionar no mapa geográfico dos meus neurónios, as caixas negras da minha existência. Os registos fotográficos e ligeiramente macabros dos momentos difíceis sem os quais não tenho a menor dúvida de que seria um aglomerado de células bastante diferente daquele que agora está a ignorar o pranto desesperado do material de estudo (espera um bocadinho “Litíase Biliar”, que a mamã já te vai mudar a fralda). A noite gelada em que a micro-eu de 12 anos pegou pela primeira vez numa caneta para escrever alguma coisa de jeito. Sentada na sala de espera do Hospital da Luz (meu Deus, como ainda recordo aquele casal à minha frente que parecia ter confundido aquela sala aberta com o seu quarto de núpcias particular). A outra noite de Verão (não por isso menos gelada) em que me sentei no chão de uma paragem de autocarro a deambular pelo papel sobre a possibilidade real de não conseguir entrar em Medicina: a primeira e última vez que consegui ter essa conversa comigo, de maneira minimamente funcional.

(Querido Universo, sei que já te agradeci inúmeras vezes. Mas, por favor, engole mais esta, outra vez, porque juro que não sei o que faria se não fosse isto. Obrigada. Até pela Litíase Biliar. Obrigada.)

A verdade é que é preciso um tornado de vez em quando. É preciso que sejamos, que nos deixemos ser, só de vez em quando, um desastre. Exigimos tanto de nós no dia-a-dia que o chamamento ao caos acaba por ser, mais do que um exercício de deliciosa rebeldia, uma necessidade para a reorganização. Assim como aquelas limpezas de Primavera em que a casa relativamente organizada se transforma num cenário pré-apocalíptico antes de retomar a normalidade.

Daqui, do meu pequeno recanto escuro, e também dos recantos escuros daqueles que me deram o privilégio de partilhar comigo os seus próprios pesadelos, vi nascer coisas bonitas. Vi pessoas mais fortes ou pelo menos mais preparadas. Vi-me a deitar a língua de fora para o espelho uma e outra vez.

Assim, acabo por me reservar o direito à descompensação. Ao tornado, maremoto, furacão e demais fenómenos meteorológicos que me parecerem necessários. Desde que cumprido o devido ritual. Vá, Pilar, acaba de escrever. Bebe o café. Lava a cara. E volta a abrir os livros que eles já têm saudades tuas.

Tinhas razão, querido amigo, não é altura para sentimentos. Mas, se pensarmos bem, eu também nunca fui muito boa a agendar os meus ataques de pânico. Talvez possa assumir esse compromisso para 2019. Até lá, larga a sebenta e responde às mensagens.

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