Shitholes, o palavrão que pode matar os sonhos de 800 mil pessoas

Para lá das discussões sobre os modos do Presidente norte-americano, há 800 mil pessoas dependentes de um acordo sobre a reforma das leis de imigração. Se isso não acontecer nos próximos dias, ficam expostas à deportação.

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O Presidente norte-americano foi acusado de racismo Reuters/Yuri Gripas

O mundo acordou esta sexta-feira com a notícia de que o Presidente dos Estados Unidos usou palavras consideradas vulgares e ofensivas para se referir ao Haiti e a países africanos, durante uma reunião na Sala Oval da Casa Branca – de acordo com o senador Dick Durbin, do Partido Democrata, Donald Trump disse que esses países são "shitholes" (qualquer coisa entre "latrinas" e "merdosos").

Mas o pano de fundo em que essas declarações foram feitas pode vir a ter um desfecho mais grave do que a indignação generalizada que elas suscitaram: se o Partido Republicano e o Partido Democrata não chegarem a acordo para reformarem as leis de imigração até ao fim da próxima semana, centenas de milhares de pessoas ficam vulneráveis à deportação e os cidadãos norte-americanos podem ter de enfrentar uma nova paralisação nos serviços do governo.

A forma ofensiva como Trump se referiu a alguns países aconteceu durante uma reunião na Casa Branca, na quinta-feira, que juntou o Presidente e dois senadores (um de cada partido) para falarem sobre uma reforma das leis de imigração que todos os responsáveis reclamam há anos, mas que até agora não conseguiram aprovar. A convite de Trump, e sem o conhecimento dos senadores Lindsey Graham (republicano) e Dick Durbin (democrata), estiveram também presentes senadores do Partido Republicano com opiniões mais restritivas sobre as políticas de imigração, uma jogada de Trump que pode ser interpretada como um sinal de que a sua posição é irredutível.

O objectivo de Graham e Durbin era mostrarem ao Presidente uma primeira proposta de reforma, que ambos pensavam poder agradar a um número suficiente de senadores de ambos os partidos (a única forma de a lei ser aprovada no Senado, já que a maioria do Partido Republicano não é suficiente para isso). Mas Donald Trump não gostou de algumas cedências que seria obrigado a fazer para apoiar a proposta dos dois senadores. E quando Graham e Durbin lhe disseram que queriam manter as protecções legais dadas a alguns milhares de haitianos que chegaram aos Estados Unidos em 2010 após um terramoto que matou mais de 100 mil pessoas, o Presidente norte-americano indignou-se: "Porque é que estamos a deixar entrar estas pessoas que vêm de shitholes?"

Para além do tom ofensivo, Trump está também a ser acusado de racismo, por ter dito, na mesma reunião, que prefere imigrantes da Noruega – um país onde 83,2% da população é etnicamente norueguesa.

A meio da onda de indignação, já esta sexta-feira, Trump negou ter-se referido ao Haiti ou a qualquer outro país naqueles termos, mas o senador Dick Durbin deu a cara por aquilo que tinha sido dito anteriormente sob anonimato: "Vocês leram os comentários na imprensa. Não li um único que seja impreciso. Sem surpresas, o Presidente começou a twittar esta manhã, negando ter usado aquelas palavras. Não é verdade. Ele disse coisas carregadas de ódio, e disse-as várias vezes."

A condenação chegou de quase todos os lados, incluindo do Partido Republicano – onde uma parte dos congressistas defende ou está disposta a aceitar uma solução com o menor impacto possível sobre os imigrantes, e outra parte não aceita menos do que a deportação em massa e a construção de um muro.

"Por cada passo em frente que o Presidente dá em termos de decisões políticas coerentes, inexplicavelmente dá dez passos atrás. Espero que os comentários de hoje tenham sido apenas um erro crasso, e que não reflictam o racismo que implicam", disse Jeb Bush, antigo governador da Florida (onde residem muitos haitianos) e um dos candidatos derrotados por Donald Trump na corrida pela nomeação do Partido Republicano à Casa Branca.

Outros antigos e actuais governadores e congressistas do Partido Republicano defendem uma reforma que inclua aquilo a que os mais radicais, como o Presidente dos EUA, chamam uma "amnistia" – dar a milhões de pessoas que vivem no país há várias décadas, e que estão bem integradas, um caminho para a obtenção de cidadania ou um estatuto de excepção que legalize a sua situação.

Um dos casos mais polémicos é o dos chamados "dreamers" – cerca de 800 mil pessoas que chegaram aos Estados Unidos quando eram crianças (levados pelos pais, por exemplo) e que estavam protegidas pela lei DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals), aprovada pelo Presidente Barack Obama em 2012. Na prática, esta lei dava uma protecção de dois anos (renovável de dois em dois anos) a essas pessoas, salvando-as da deportação e dando-lhes a oportunidade de obterem uma autorização de trabalho.

Mas, no ano passado, a Administração Trump anunciou que não iria renovar essa protecção, e agora centenas de milhares de pessoas estão em risco de serem deportadas se o Congresso não chegar a acordo para reformar as leis da imigração – quando comentou o fim da protecção, Trump indicou que aceitaria promulgar uma lei que previsse uma solução mais estável para os tais "dreamers", desde que o Partido Democrata aceitasse satisfazer as suas propostas de campanha, como a construção de um muro.

E foi para perceberem se Trump estava de acordo com a sua proposta bipartidária que os senadores Lindsey Graham e Dick Durbin foram à Casa Branca na quinta-feira. Apesar de poucos terem acreditado que essa proposta seria bem recebida (porque é a primeira e porque só foi discutida por seis dos 100 senadores antes de ter chegado à secretária de Trump), havia pelo menos a esperança de que fosse um bom tiro de partida – no melhor cenário, o Presidente diria que não concordava com algumas propostas mas encorajaria Graham e Durbin a trabalharem no Senado para obterem um acordo aceitável para os dois partidos até ao fim da próxima semana.

É por isso que a forma como Trump se referiu a alguns países (e, segundo o senador Durbin, ao sofrimento de alguns imigrantes) pode afastar ainda mais os dois partidos, deixando pouca margem de manobra aos moderados de ambos os lados para convencerem os mais radicais a fazerem cedências. E, se isso não acontecer até à meia-noite do dia 19 de Janeiro, o Partido Democrata parece estar disposto a usar o trunfo que o Partido Republicano usou em 2013 para tentar desfazer o Obamacare: se os republicanos e o Presidente Trump não aceitarem as suas propostas de reforma das leis de imigração, os congressistas do Partido Democrata não aprovam as verbas destinadas ao funcionamento de grande parte dos serviços federais, incluindo os salários de dois milhões de funcionários – e os "dreamers" passam a estar em situação ilegal no país.

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