Desfeito o mistério da “lista dos homens merdosos”

Uma investigação de uma repórter céptica em relação às causas das feministas norte-americanas precipitou a revelação do nome da criadora de uma folha de cálculo com mais de 70 nomes de jornalistas identificados como abusadores sexuais, que desde Outubro fazia escândalo nos EUA. O movimento #MeToo inquieta-se.

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Há receios de reacção contra o movimento #MeToo Lucy Nicholson/REUTERS

Moira Donegan desencadeou uma corrente de solidariedade feminina ao criar um documento na aplicação online Google Docs a que chamou “os homens mais merdosos dos media”. Numa folha de cálculo partilhável na Internet, que pode ser alterada por quem a recebe, colocou alguns nomes de editores e outros jornalistas do meio nova-iorquino bem conhecidos por assediarem – ou agredirem, ou até violarem – colegas de trabalho. A lista, anónima, ganhou vida própria. O que não se sabia é quem seria a sua criadora original. Donegan acabou por se dar a conhecer, sob ameaça de o seu nome ser revelado – por outra mulher.

“Eu iniciei a lista dos homens nos media. O meu nome é Moira Donegan”, escreveu a jovem jornalista – no artigo em que se deu a conhecer na quinta-feira, e que escreveu para o site online The Cut da revista New York Magazine, diz ter começado a trabalhar em revistas mal acabou a universidade.

Ex-editora na revista New Republic, já escreveu para a New Yorker, a London Review of Books e para a revista n+1. Revelou-se porque uma outra jornalista, Katie Roiphe – com fama de antifeminista, por causa de trabalhos anteriores – estava a preparar um artigo sobre a lista para o próximo número da revista Harper’s – a segunda mais antiga revista dos Estados Unidos (existe desde 1850), a seguir à Scientific American.

“Em Outubro criei esta folha de cálculo em que recolhia rumores e alegações de condutas sexuais impróprias, muitos dos casos com violência, de homens que trabalham em revistas e no sector editorial. O documento anónimo, de criação colaborativa, foi uma primeira tentativa de resolver o que parecia um problema insolúvel: ajudar as mulheres a protegerem-se a si próprias de ataques e abusos sexuais”, explica.

Ingénua

Mas confessa ter sido “ingénua”, por não pensar que a lista se poderia tornar viral na Internet.

A lista andava nas bocas do mundo deste Outubro. Apesar de ter sido criada com a intenção de permanecer privada – “Queria criar um local para as mulheres partilharem as suas experiências de abusos sem serem desacreditadas ou julgadas” –, rapidamente se tornou num acontecimento em si própria, que fugiu ao controlo da sua criadora.

Foi dada a conheder ao grande público no site Buzzfeed e, apesar de Donegan a ter retirado da Internet durante 12 horas nessa altura, começaram a pulular outras versões, sobre as quais não tinha mão. Uma delas foi parar ao Reddit, uma rede social agregadora de conteúdos e de discussão.

Moira Donegan diz que procurou incluir sinais de alerta: ali não estavam factos provados. “Incluí uma ressalva: vejam isto com cepticismo. Se virem aqui um homem de quem são amigas, não fiquem em pânico”.

Mas a força das histórias partilhadas é impressionante. “As mulheres começaram a adicionar de forma anónima as suas histórias de ataques sexuais: muitos dos relatos eram violentos, detalhados e difíceis de ler. Contavam que lhes tinham batido, drogado, violado. Contaram terem sido seguidas até casas de banho e ameaçadas com armas. Muitas, muitas mulheres revelaram que foram apalpadas no trabalho, ou que um colega lhes mostrou o pénis. Ao ver a folha de cálculo a ser preenchida, rapidamente se tornou claro que muitas de nós suportaram mais do que aquilo que estamos dispostas a admitir, mesmo em conversa umas com as outras”, relata Moira Donegan.

“Foi isto que me chocou com a folha de cálculo: perceber que fazia tanta falta, que é mais comum a experiência do abuso sexual do que a oportunidade de falar sobre ele”, diz a jornalista, para tentar justificar a existência deste documento online, que acabou por se transformar também numa espécie de praça pública, ou local de apedrejamento de infractores.

Na lista constam cerca de 70 nomes, de jornais, revistas literárias, revistas noticiosas.

Mike Cernovich, um conhecido blogger da alt-right (a nova extrema-direita americana, que é misógina e xenófoba), cujo lema é “conflito é atenção, e atenção é influência”, ofereceu um prémio de dez mil dólares a quem lhe fornecesse a lista. Tê-la-á conseguido, ainda em Outubro do ano passado, e embora tenha prometido divulgá-la na íntegra, não o fez. Mas revelou alguns nomes. E consta que alguns dos editores e nomes sonantes dos media que foram despedidos nos últimos meses nos órgãos de comunicação social norte-americanos por abusos e relações impróprias estariam na lista iniciada por Donegan.

Explosão no Twitter

A lista dos “homens mais merdosos dos media” tornou-se um caso, cada vez mais volumoso. E chamou a atenção de Katie Roiphe – uma jornalista odiada pelas feministas norte-americanas, autora do livro The Morning After: Fear, Sex, and Feminism (numa tradução literal: A manhã seguinte: medo, sexo e feminismo), de 1993, em que defende que as queixas de violações em encontros amorosos nas universidades são muito exageradas.

Moira Donegan recebeu um telefonema de Roiphe em Dezembro, pedindo-lhe um comentário para um artigo sobre “o actual momento feminista”. “Ela não disse que sabia que eu tinha criado a folha de cálculo”, relata Donegan na Cut.

Recusou fazer qualquer comentário, mas há poucos dias recebeu um mail do serviço de confirmação de factos da revista Harper’s – dizia que Katie Roiphe a apresentava como “a mulher que era identificada como uma das criadoras da lista dos homens merdosos”, e pediam-lhe que confirmasse essa informação.

De repente, a história rebentou no Twitter. E toda a gente parecia indignada por Roiphe estar disposta a revelar a identidade da criadora da lista. Dayna Tortorici, editora da revista n+1 escreveu na rede social que uma revista estava a planear publicar um artigo a revelar o nome da criadora da folha de cálculo. “Só posso dizer: não o façam. Não está correcto.”

January 9, 2018 It’s come to my attention that a legacy print magazine is planning to publish a piece “outing” the woman who started the Shitty Media Men list. All I can say is: don’t. The risk of doxxing is high. It’s not the right thing to do.

— Dayna Tortorici (@dtortorici)

A seguir, Nicole Cliffe, co-fundadora do site feminista e de humor Toast, expressou a sua indignação oferecendo-se para reembolsar quem tivesse artigos para publicar na próxima edição da Harper’s e os retirasse, como forma de protesto contra o trabalho de Roihpe. Até quarta-feira, já se tinha comprometido a pagar 19 mil dólares, disse ao New York Times.

“A indignação parecia tornar inevitável que a minha identidade fosse revelada ainda antes da publicação do artigo de Roiphe. Tudo era aterrador”, diz Donegan, para explicar por que é que decidiu revelar o seu nome, porque resolveu criar a lista, e a angústia com que tem vivido nestes meses.

“Após a folha de cálculo ter sido revelada, a minha vida mudou de forma drástica. Perdi amigos. Alguns porque acharam que tinha sido demasiado zelosa, outros porque não tinha sido suficientemente cautelosa. Também perdi o emprego. O medo de ser exposta, e do assédio que necessariamente se vai seguir, dominou a minha vida desde então. Aprendi que proteger as mulheres é uma função que beneficia de poucas protecções”.

January 11, 2018 To keep perspective: t?he list itself is a very small part of long piece that has not yet closed. ?The question of who created the list was not in any way important to the piece.

— Katie Roiphe (@katherineroiphe)

Depois do surto de denúncias de casos de abusos em quase todos os sectores nos EUA, dos media ao cinema, passando pela política, há receios de que surja uma reacção contra esta nova corrente feminista que tem como ponta de lança o movimento #MeToo. Em França, um documento assinado por artistas e intelectuais francesas, entre elas Catherine Deneuve, pelo direito ao piropo - o direito dos homemns a importunarem, dizia o texto -, já reflecte a necessidade que alguns sentem de haver algum retrocesso neste movimento. 

O que vai acontecer a Moira Donegan, não se sabe. Katie Roiphe, pouco amada por outras mulheres, pode atacar a lista e todo o projecto de denúncia. Para já, garante que o seu objectivo não era revelar a identidade da autora da lista. “O meu objectivo não é revelar o nome de ninguém”, declarou ao New York Times e à revista Atlantic. Essa é a parte da notícia que já será velha quando sair o próximo número da Harper’s.

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