As histórias dos outros

Nenhuma Verdade se Escreve no Singular: um romance de estreia mediano. Com 250 páginas e tudo.

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A justaposição de pequenas histórias ou contos mais ou menos autónomos e mais ou menos independentes uns dos outros no interior de uma estrutura maior e inclusiva é uma estratégia narrativa que, sendo antiga, tem sido também quase sempre profícua e feliz. Pelo menos desde o Decameron, As Mil E Uma Noites e a ficção picaresca clássica. Em Nenhuma Verdade se Escreve no Singular, tal dispositivo volta a ser frutuoso, sendo mesmo a virtude maior do romance de estreia de Cláudia Cruz Santos (Aveiro, 1971), doutorada em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde lecciona Direito Processual Penal e Criminologia, e autora de várias obras de tema jurídico. Sendo a protagonista do romance uma juíza e decorrendo parte da acção na (e da) sala de um tribunal, a informação biográfica pode ser enganadora, uma vez que — e contrariando uma espécie de mandamento realista que aconselha os romancistas a só escreverem sobre o que ‘conhecem’ — a autora nos pareceu tanto mais interessante quanto mais se distancia do estrito e técnico campo temático da sua especialidade académica. Este contribui com o seu jargão burocrático (“regulação das responsabilidades parentais”, “institucionalizar uma criança”, etc.), nem sempre usado com ironia, para realçar os pormenores veristas do romance. E pouco mais.

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“Mergulhar nas histórias dos outros e pôr-se a salvo das suas próprias histórias”, vai pensando Amália Assunção ao entrar “na sua sala de audiências, antecipando a tranquilidade e o alheamento que mais um julgamento lhe garantem, pelo menos durante algumas horas” (p. 163). E quando a quarentona e desencantada juíza (“O primeiro cliente do dia”, ocorre-lhe certa ocasião à vista de um réu), que “sonha com um homem cujo nome nunca é dito”, se alheia de si mesma, o romance melhora quase sempre e a nossa leitura folga. Porque estas digressões pelas “histórias dos outros” refrescam ciclicamente o interesse da leitura, e fazem-no de uma forma económica e orgânica e estruturalmente dependente da acção principal (que decorre no presente e, substancialmente, em lugares não nomeados mas certamente portugueses): são as histórias das personagens levadas ao tribunal, todas elas (significativamente?) de condição social ‘mais desfavorecida’ (segundo o eufemismo vigente) do que a protagonista. Porém, mesmo quando a personagem secundária tratada está no outro extremo social, como é o caso da agustiniana Tia Milinha, a invenção romanesca é conseguida. Na verdade, dá-se neste romance o caso talvez paradoxal de a protagonista ser a menos memorável (por assim dizer) das suas personagens, condição da qual o algo precipitado remate (que retoma, bastante previsivelmente, o motivo inicial de uma pintura escancaradamente alegórica) não consegue resgatá-la inteiramente. Exemplo supremo disto mesmo é o supérfluo capítulo XI. A determinada altura, a juíza, que temporariamente tomara à sua guarda uma criança “institucionalizada” chamada Marta, decide ir com esta passar férias a Marraquexe. Além de irrelevante para a acção, o resultado é uma sucessão de lugares-comuns da literatura dos folhetos turísticos. Noutras alturas, em contrapartida, a voz narrativa é bem capaz de, numa única frase, socorrer-se de um lugar-comum e denunciá-lo ironicamente: “Mas Amália que tirasse o cavalinho da chuva que continuava a cair lá fora, no beco sujo e sem luz” (p.57).

Se as histórias adjacentes à acção principal constituem a virtude maior deste romance, a mais simpática é a inclusão de um propedêutico índice onomástico comentado das personagens, sendo apenas de lamentar que não remeta para as páginas onde aquelas surgem. Enfim, um perfeito romance mediano, com as 250 páginas recomendadas por Forster e tudo.

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