PGR constitucionalmente renovável?

Dizer-se que não se vai repropor certa personalidade porque a Constituição não deixa é, no mínimo, um modo peculiar de entender o jogo jurídico-constitucional.

1. O mundo da Justiça e da Política ficou particularmente atento e sobretudo surpreendido com a interpretação “pessoal” da ministra da Justiça sobre a proibição constitucional de renovação do mandato da PGR. Interpretação que foi secundada — não se sabe se em “damage control” — pelo PM no debate parlamentar de anteontem. Sabemos que em Direito as interpretações não são líquidas, mas esta assunção de posição assume uma gravidade especial, que em muito transcende a mera perspetiva jurídico-constitucional.

2. Concluir que o mandato da PGR é único e não renovável não é uma mera opinião exótica porque é uma interpretação errada da Constituição. Na letra da Constituição, em lado algum se diz que o mandato de PGR não possa ser renovado, ao contrário do que sucede com os mandatos — esses, sim, únicos — dos juízes do Tribunal Constitucional.

Nem é pelo facto de a duração de um cargo público ficar delimitada temporalmente que esse cargo se torna de exercício único. Se assim fosse, todos os cargos públicos com uma definição temporal na Constituição não seriam suscetíveis de renovação. Portanto, os deputados, por exemplo, com um mandato de quatro anos, por este brilhante raciocínio, jamais seriam reelegíveis...

3. Também não se pode perder de vista a delicadeza desta matéria porque, tratando-se do exercício de um cargo público — que é uma expressão indeclinável de um direito, liberdade e garantia de natureza política —, só pode vigorar o princípio da liberdade. Ora, as restrições de tais direitos são excecionais e só serão válidas se constitucionalmente legitimadas. Não se vê onde possa ser encontrada essa autorização e é temerário vislumbrar proibições onde elas não existem em matéria de direitos fundamentais.

Coisa diversa é discutir a bondade de a Constituição estipular a não recondução: mas essa é uma opção que tem de ser analisada e, acima de tudo, constitucionalmente aprovada pelo Parlamento, o que manifestamente não sucedeu.

4. Acresce que a opinião da titular da Justiça está em contramão com a mens legislatoris, que foi clara no sentido de PS e PSD terem entendido — em acordo político-parlamentar aquando da revisão constitucional de 1997 — que a introdução de um tempo para o mandato do PGR não implicava a sua não recondução.

Não pode a governante ignorar esse tempo histórico porque sempre foi — e já o era — magistrada do Ministério Público e decerto se recordará da razão por que se alterou a Constituição com a predeterminação de um tempo para o mandato do PGR. Estávamos na década de 1990, num outro tempo revolto — e também de revolta — com um PGR que se eternizava no poder e sobre o qual se lançaram as mais variadas dúvidas, até recebendo o cognome de “Arquivador-Geral da República”. 

5. Mesmo que a opinião ministerial deva ser fundada na ignorância daquilo que diz a nossa Lei Fundamental, ela também não se livrará de acusação, ainda mais penosa, que é a de justificar uma vontade política com base numa norma constitucional inexistente.

Ora, é aqui que tudo se torna mais dramático e ninguém colocou em causa as competências dos órgãos constitucionais quanto à designação do PGR. O que está escrito é que se trata de uma escolha combinada entre o Governo e o Presidente da República: aquele propõe, este decide se nomeia ou não a pessoa indicada.

Implicitamente dizer-se que não se vai repropor certa personalidade porque a Constituição não deixa é, no mínimo, um modo peculiar de entender o jogo jurídico-constitucional. E note-se que isso é feito a cerca de noves meses de terminar um mandato, não nas semanas finais do mesmo, e numa altura em que são efervescentes as notícias que envolvem a atuação do Ministério Público.

De repente, a questão deixou de ser jurídica e tornou-se inopinadamente – ou talvez propositadamente – política com a multiplicação de opiniões que vão escrevendo o epitáfio funcional mais ou menos preenchido da atual PGR.

Não foi bonito de se ver.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico  

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