O albatroz errante

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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José Filipe de la Fuente
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Sino de chamada para a pesca José Filipe de la Fuente
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A toponímia em Tristão da Cunha é, como tantas outras coisas na ilha, algo particular. Enseadas, vales ou falésias são muitas vezes baptizados com base em acontecimentos, resultando num mapa em que se podem encontrar sítios como “Onde-o-padre-desembarcou-as-suas-coisas” ou “De-onde-a-cabra-saltou”. Passamos por alguns destes lugares no regresso ao povoamento, depois da visita aos talhões de batatas, e paramos no Café da Cunha (com esta exacta grafia), o único da ilha, para uma sanduíche de lagosta.

A pesca da lagosta de Tristão (Jasus tristani) é a base da economia local. A espécie é exportada para restaurantes de luxo em diversas partes do mundo, ao abrigo de um contrato de concessão que tem repercussões em quase todos os aspectos da vida na ilha. Quando as condições permitem pescar, o que acontece, em média, durante 60 dias por ano, soa o cilindro de metal existente no centro da localidade e os homens fazem-se ao mar, vendendo ao concessionário o que capturam. Uma grande parte da população trabalha na fábrica de processamento e congelamento de peixe. Mas, igualmente importante, as contrapartidas do contrato incluem a manutenção e abastecimento dos geradores que fornecem electricidade à ilha e a disponibilização de um mínimo de transporte de carga e passageiros nos pesqueiros da empresa.

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A sanduíche é deliciosa, dizemos, o que arranca um grande sorriso a Mary Repetto, que hoje está de serviço ao café. Antes de se casar, o apelido de Mary era Green. Na verdade, só poderia ser um de sete (a que, muito recentemente, foram acrescentados mais dois), uma vez que todos os habitantes de Tristão descendem do grupo de colonizadores iniciais e dos marinheiros de diversas nacionalidades que, ao longo do século XIX, foram chegando à ilha, de forma voluntária ou na sequência de naufrágios. Como dois italianos, que trouxeram consigo a muito necessária diversidade genética e dois apelidos exóticos, Repetto e Lavarello, o que não impediu, no entanto, problemas de consanguinidade, como a elevada incidência de asma, que afecta mais de 50% da população. Terminamos a sanduíche e conversamos um pouco mais com Mary. Está particularmente orgulhosa dos arquivos da ilha, alojados no mesmo edifício do café, e cuja organização e modernização está a ser coordenada por uma arquivista de Zurique que, em regime de voluntariado, decidiu instalar-se na ilha durante um ano.

Para além de uma arquivista suíça, outra coisa que não esperávamos encontrar em Tristão da Cunha é uma estação que regista explosões nucleares, parte de uma rede mundial instalada depois da Segunda Guerra. Ou um hospital moderno, com equipamentos estado da arte - Hospital Camogli, em honra da cidade italiana de onde Repetto e Lavarello eram naturais – fornecidos por uma empresa sueca e, segundo alguns dos nossos companheiros de viagem ligados à Medicina, excessivamente caro e desadequado às capacidades de operação e manutenção existentes na ilha.

Edimburgo dos Sete Mares é mais pequena do que a maioria das aldeias portuguesas. O que não impede a existência de duas igrejas, uma anglicana e outra católica, e de dois cemitérios. A modernização do edificado trouxe conforto aos habitantes, mas criou um conjunto que, ao contrário da paisagem natural, é mais atraente visto de longe do que de perto. Na residência do administrador, e em frente ao único bar, não muito longe da única loja e da única escola, duas bandeiras inglesas com o emblema de Tristão da Cunha esvoaçam no vento omnipresente e lembram-nos que estamos em território britânico.

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Igreja Católica em Edimburgo dos Sete Mares José Filipe de la Fuente

À saída do povoamento, assustadoramente próximo das últimas casas, estende-se um campo de lava negra que se precipita no mar e, atrás de si, o cone de um pequeno vulcão. Foi este cone secundário que, em 1961, entrou em erupção, soterrando a primeira fábrica de peixe e o melhor ancoradouro da ilha e obrigando à evacuação de toda a população. Os habitantes de Tristão da Cunha viram-se, abruptamente, transportados para Inglaterra e para o século XX, e no centro de uma vaga de atenção mediática que não desejavam e não quiseram tolerar. No final de 1963, tendo confirmado que as habitações não haviam sido destruídas, praticamente todos os elementos da comunidade mais isolada do mundo regressaram à sua casa no meio do Atlântico, deixando para trás a florescente sociedade de consumo da Inglaterra dos swinging sixties.

Antes da partida, dirigimo-nos ao minúsculo museu – que funciona no mesmo espaço do café e do posto de correios - para deixar o pequeno presente que trouxemos; um painel de azulejos tradicionais portugueses com a representação de uma nau quinhentista, semelhante à que Tristão da Cunha terá comandado quando, literalmente, colocou a ilha no mapa. Vamos gostar de pensar nele, numa parede da St Mary School ou do Café da Cunha, quem sabe despertando alguma curiosidade sobre Portugal.

No cais, o barco pneumático recolhe os últimos passageiros de regresso ao RMS St Helena. O administrador de Tristão despede-se da governadora e permanece no cais, enquanto o barco que a transporta se afasta no mar cada vez mais revolto. Pouco depois, também nós estamos de volta ao navio. A âncora foi levantada, a sirene soa, começamos a afastar-nos. O sol que continua a brilhar permite-nos uma rara visão de toda a ilha, dominada pelo imponente cone do vulcão principal. Cá em baixo, Edimburgo dos Sete Mares e os talhões de batatas parecem encurralados entre a montanha e o mar.

Dizemos adeus a Tristão da Cunha, um lugar aonde sabemos que será muito difícil voltar. Durante horas o navio é seguido por um albatroz de Tristão (Diomedia dabbenena), espécie endémica e uma das maiores aves do mundo. Este pássaro majestoso, transportado nas correntes de vento pelas suas enormes asas que se mantêm quase imóveis, é o emblema de Tristão. Olhando para ele, tão independente na imensa solidão do Atlântico Sul, parece uma escolha particularmente apropriada.

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Edimburgo dos Sete Mares, Tristão da Cunha José Filipe de la Fuente

Esperam-nos mais cinco dias de navegação até Santa Helena. Mas, essas, serão as próximas histórias.

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